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Mariana Vasconcelos

I Love Aveiro

Parte à descoberta

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História é identidade

A identidade de um local não se resume a estradas, prédios ou pontes. A identidade é criada pelo coletivo de histórias únicas que se entrecruzam para tecer uma herança cultural vibrante. Numa cidade com um crescente fluxo turístico e envelhecimento da população torna-se necessário eternizar estas histórias, valorizando o património humano. Assim surge o “I Love Aveiro”.

O “I Love Aveiro” reúne uma colectânea de histórias que encapsulam a essência da nossa região, seja através das pessoas, dos lugares ou dos acontecimentos que a moldam. Este projeto, em contínuo crescimento, é constituído por várias edições, cada uma representando uma compilação distinta de narrativas. Iniciámos esta jornada em 2018, literalmente à nossa porta, com o “Bairro da Beira-Mar”, um compêndio de tradições, figuras históricas e locais emblemáticos de um dos bairros mais icónicos de Aveiro. Em 2019, criámos o “Stories for Solidarity” e partilhámos as histórias de migrantes que escolheram Aveiro como sua nova casa. Mais tarde em 2020, lançámos o “Heróis de Aveiro” como forma de prestar homenagem aos corajosos homens e mulheres que, mesmo não usando uma capa, salvam vidas. Em 2021, com o “Mapa Solidário de Aveiro”, colocámos no mapa as instituições, associações e outras entidades que incansavelmente se dedicam ao bem-estar da comunidade aveirense. Mais recentemente, em 2024, com o “Voice of the Masters” demos voz aos mais velhos, muitas vezes esquecidos pela nossa sociedade.

Estas histórias não são meras referências a pontos turísticos que qualquer visitante em busca de ovos moles acaba por encontrar. São incríveis narrativas sobre pessoas cativantes, locais memoráveis e acontecimentos únicos.

Escadaria “I Love Aveiro” – onde tudo começou

Não só os Aveirenses, como também aqueles que visitam a “cidade dos canais”, conhecem a escadaria mais famosa de Aveiro. Estas escadas, ao lado do canal principal da Ria de Aveiro e a poucos minutos a pé do centro da cidade, enviam uma mensagem com a qual todos concordamos: “Eu Adoro Aveiro”.

Esta escadaria, feita de calçada portuguesa, foi intervencionada pela primeira vez na primavera de 2013 pela Agora Aveiro através do projeto internacional “Art and Trust”. Este projeto, implementado para oferecer oportunidades de expressão aos mais jovens, foi criado em colaboração com os especialistas em graffiti da SublimeVilla, um conhecido estúdio de tatuagens. Um processo semelhante aconteceu simultaneamente na Sicília, em Itália, onde uma outra organização parceira fez as suas próprias acções de arte de rua com o seu grupo de jovens.

De repente, as escadas, outrora cinzentas, tornaram-se num dos locais mais famosos da cidade, sendo hoje um dos símbolos de Aveiro.

Bairro da Beira-Mar

O “I Love Aveiro” presta homenagem ao mais típico bairro da cidade dos canais, o “Bairro da Beira-Mar”. Neste característico ponto de Aveiro, onde os habitantes são chamados de “cagaréus”, escondem-se inúmeras histórias que nos aventuramos a desvendar. Histórias de um bairro que se ergueu das antigas muralhas de Aveiro, histórias que se enredam por entre as capelas de São Gonçalinho e São Bartolomeu, histórias que nasceram das célebres rivalidades entre “cagaréus” e “ceboleiros”. Para dar a conhecer a todos as histórias deste tão icónico bairro da nossa cidade, nasce o “I Love Aveiro – Bairro da Beira-Mar”.

Stories for Solidarity

O “Stories for Solidarity” nasceu porque amamos a nossa cidade. Porque queremos uma sociedade mais compassiva, onde as pessoas não desviam o olhar da luta. Queremos que as pessoas reflitam, mas que também tenham iniciativa. Que apoiem os imigrantes e as iniciativas de inclusão social, em vez de ignorar. É um desafio mudar as atitudes das pessoas ao nosso redor e, embora não dependa exclusivamente de nós, podemos ajudar a uma mudança de mentalidades. A mostrar que “eles” não são assim tão diferentes de “nós”. Entrevistámos 11 imigrantes que se mostraram abertos a contar-nos a sua jornada - de como é vir de um país diferente e estabelecer-se em Aveiro. Talvez depois de ouvirem estas histórias como nós as ouvimos, percebam que não somos assim tão diferentes.

O “I Love Aveiro – Stories for Solidarity” foi financiado pelo programa Corpo Europeu de Solidariedade da Comissão Europeia, pelo Município de Aveiro e pelo Instituto Português do Desporto e Juventude I.P..

Heróis de Aveiro

Com o “Heróis de Aveiro” prestamos homenagem aos homens e mulheres que, embora não usando uma capa, salvam vidas! Bombeiros, médicos, polícias, enfermeiros, professores, vizinhos e amigos. Pessoas que dedicam o seu tempo e capacidades a melhorar a nossa cidade. Pessoas que não se veem como “heróis”, mas que o são para a comunidade. Reconhecemos assim o trabalho destes profissionais e, ao mesmo tempo, mostramos como cada um de nós pode ser um herói.

O “I Love Aveiro – Heroes of Aveiro” foi financiado pelo programa Corpo Europeu de Solidariedade da Comissão Europeia, pelo Município de Aveiro e pelo Instituto Português do Desporto e Juventude I.P..

Mapa Solidário de Aveiro

Através do nosso trabalho na comunidade temos percebido que são muitas as instituições, sociais e não só, que têm dificuldade em dar a conhecer aquilo que fazem. Com o “Mapa Solidário de Aveiro” procuramos dar visibilidade a diferentes instituições da região - culturais, sociais e ambientais - promovendo a solidariedade e o voluntariado por entre a comunidade local. Com este projeto abrimos as portas destas entidades a quem delas precisa mas, também, a voluntários que queiram ajudar e empresas que desejem apoiar a sua missão.

O “I Love Aveiro – Solidarity Map of Aveiro” foi financiado pelo programa Corpo Europeu de Solidariedade da Comissão Europeia.

Voice of the Masters

O “Voice of the Masters” é um tributo às vozes dos avós, os mestres da vida. Entrevistámos doze idosos para que nos contassem as suas experiências, falassem das suas vidas e dos conselhos que têm para dar. Demos voz às vozes que nem sempre são ouvidas para que todos as possam ler e reler. Para que possamos relembrar que todas as vidas são uma história à espera de ser contada.

O “Voice of the Masters” foi financiado pelo programa Corpo Europeu de Solidariedade da Comissão Europeia, pelo Município de Aveiro e pelo Instituto Português do Desporto e Juventude I.P..

Um mapa repleto de histórias

Este mapa interativo permite-te conhecer as histórias que fazem Aveiro. Seleciona a edição do “I Love Aveiro” que pretendes explorar e clica num ponto do mapa para leres a respetiva história.

Beira-Mar

O início é fictício, mas traçado pelo mar.

Seguia a ria o seu caminho, e por Aveiro decidiu ficar.

Criou, sem separar, populações com sede de mar. Nasce, a Norte do canal principal da Ria de Aveiro, o bairro da Beira-Mar na freguesia de Vera Cruz. Brota, a Sul do canal, a freguesia de Glória. Duas populações e uma rivalidade que em nada revolta e em tudo apazigua. Uma, a Norte, navega na eternidade do mar misturado com o Sol e dedica o seu dia ao sal e à ria. Estes são os Cagaréus. Outra, a Sul, semeia o campo e as hortas, vai ao mercado às cebolas e anda pelas portas. Estes são os Ceboleiros. Cagaréus, como serão lembrados, eram marnotos, pescadores ou moliceiros acompanhados pelas suas embarcações, uma delas a bateira. O curioso nome de cagaréus provém da ré do barco, utilizada, no aperto do momento, para as necessidades dos ocupantes.

O passado do bairro é pintado azulejo a azulejo pelos habitantes que nele cresceram e a ele permanecem fiéis. Contrasta com o presente através de lembranças, em cores de festival, a despertar uma altura em que os mais novos aprendiam a nadar na ria que um dia viriam a explorar. Roupas estendidas decoravam as ruas onde o familiar é tradição e o estranho, aparição. Casas soalheiras, eternas em comparação, tinham as chaves na porta como um convite extenso, até para os Santos do seu coração. E não eram poucos, os Santos da região. Mereciam calendários de festas em sua adoração. Pedidos de proteções, promessas e convicções. São Gonçalinho tem o seu nome celebrado desde 1875, em festas que se prolongam por um fim-de-semana alargado, o mais próximo de 10 de janeiro. S. Bartolomeu, quando libertado da sua capela a 24 de agosto, deambula livremente pelas ruas de Beira-Mar, fazendo passar o vento que em Aveiro não podia faltar.

Como seria de esperar e de maneira nenhuma culpar, tal zona ficou reputada para visitar. O presente tem tudo por contar, tudo por desvendar. Talvez a sede de mar em nada irá mudar e a este bairro emblemático os Homens estão destinados a parar.

Cagaréus e Ceboleiros

Atualmente separados por um canal, na antiguidade por uma muralha. Cagaréus e Ceboleiros. Não se sabe ao certo quanto tempo temos de recuar para chegar à origem de tais designações, mas o motivo... esse, é amplamente conhecido.

Cagaréus, nascidos na antiga freguesia da Vera Cruz, a norte do canal principal da ria, no Bairro da Beira-mar. Intimamente ligados ao mar e à burguesia. O seu nome provém da junção das palavras “Cagar à ré”, isto porque, em altura de aperto fisiológico, era na ré da embarcação que advinha o alívio. Embarcações havia 3, cada uma com a sua função. O mercantel, um barco de transporte, tanto de passageiros como de carga, é muitas vezes confundido, por quem não é da terra, com o moliceiro, ex-libris da ria. Distinguem-se pelo tamanho e pela forma da proa. O primeiro, maior em tamanho, com uma proa pouco curvada que acaba em bico; já o segundo com proa e popa altas e curvadas. No moliceiro, o mais puro na atividade a que se destina - apanhar o moliço, são característicos os painéis decorativos exuberantes e, por vezes, brejeiros. As bateiras, com várias funções, desde a pesca de berbigão, ao transporte do pescado, pessoas e pastos, são embraiadas a preto. Dependendo da sua profissão, que é como quem diz, do barco onde navegavam, poderiam ter diferentes designações. Moliceiro, como o barco a si atribuído, era aquele que se ocupava da recolha do moliço ou junco. Pescador, tal como o nome indica, ocupa-se das pescas. Marnotos, atualmente em menor abundância, são os responsáveis pela recolha do sal, podendo usar o mercantel para o seu transporte.

Aos Ceboleiros estava entregue o campo, na zona mais nobre da vila. Junto ao antigo templo de S. Miguel, onde hoje se encontra a Praça da República, era realizado o Mercado de Cebolas, local onde os agricultores realizavam as suas trocas comerciais.

A rivalidade marca a sua história. Namorar com alguém do outro lado da ponte era motivo de zaragata. E em altura de festa, comparações eram inevitáveis. Na época em que só havia um andor para as duas margens, a procissão fazia-se em dias diferentes. Diz-se que houve um ano, por altura da Procissão do Senhor dos Passos, que uma das freguesias se recusou a entregar o andor. O resultado de tal rivalidade, acentuada pelo sucedido, foi uma violenta discussão que ficou marcada na memória dos habitantes.

Com o passar dos tempos e a junção das freguesias, a rivalidade atenuou. Mas aveirense verdadeiro, ou é cagaréu ou ceboleiro.

Capela de São Bartolomeu

Quando a história não é bem conhecida, a imaginação faz o resto. Se aos receios e incertezas se aliar a criatividade para dissipar o nevoeiro e encontrar explicações que nos confortem, surgirão tradições, devoções ou histórias peculiares, neste caso, atrás de uma discreta capela.

A singela capela de S. Bartolomeu, perdida nas ruelas do bairro da beira-mar, ao que parece, dá resposta a várias questões que assaltam tanto quem está de passagem como quem fica em Aveiro. Se sempre procurou a quem se queixar de não ser possível abrir guarda-chuvas nesta cidade ou do vento lhe oferecer um penteado que não pediu, está a ler a história certa. Modesta por fora, vestida de branco mas não totalmente despida de cor, a ténue sugestão de azul na cúpula hemisférica, a planta circular - é assim que quem deambula junto ao canal de S. Roque a conhece.

Por cima da porta retangular, está inscrito o nome de quem a mandou edificar em 1568, André Dias Caldeira, sobre o qual também existe nevoeiro. Não sendo a mais antiga nem popular capela de Aveiro, é das que se mantêm menos alteradas. Não há consenso sobre as suas origens, embora algumas fontes a coloquem no período em que D. Manuel obrigou à conversão os judeus e estes continuaram as orações em segredo.

É altura de entrar dentro da modesta capela. Aliás, seria altura de entrar na capela, mas a porta está fechada. A capela de S. Bartolomeu só abre as suas portas uma vez por ano. Para os irresistivelmente curiosos aqui fica a descrição do seu recheio contrastante com a modéstia do exterior: no interior, esconde-se um altar habitado por três santos. Estes apresentam-se, não muito convencionalmente, vestidos de cores garridas, o que não era muito comum nem apreciado na arte sacra. Contudo, em Aveiro já vamos estando habituados a este festival de cores, a estes santos vistos como desculpa para fazer a festa. De entre os santos-festivaleiros representados, encontra-se S. João Batista, ligado aos ciclos de trabalho dos marnotos e de preparação das salinas, N. Senhora do Ó e, finalmente, S. Bartolomeu. Este é um santo peculiar. Diz-se que sobre ele não muito se sabia e, mais uma vez, onde não se sabe muito a imaginação faz o resto. Segundo se diz, S. Bartolomeu era discreto mas fazia questão de dizer o que pensava. Encontramo-lo representado com uma adaga, pois diz a lenda que morreu esfolado vivo como um mártir. A sua voz era também ela peculiar. S. Bartolomeu tinha uma voz adjetivada de estranha e era dotado ainda, notem, da capacidade de “cooperar com o outro lado”.

É altura então de abrir a capela. Diz-se que o "moço", o diabo, é libertado no dia 24 de Agosto, dia de S. Bartolomeu, e deambula livremente pelo bairro da Beira-mar. Ora, isto deve-se à capacidade que apenas S. Bartolomeu tem de o dominar e de, neste dia, conceder a sua libertação para evitar que este se revolte por estar amarrado a seus pés todo o ano.

Os poderes de S. Bartolomeu não acabam por aqui. Para as almas distraídas e cabeças voadoras que perderam algo, não têm por que temer. Existe uma tradição que diz que basta atirar, durante a noite, moedas pretas junto à capela de S. Bartolomeu e este devolverá o que está perdido.

E, finalmente, o desvendar da razão pela qual Aveiro é tão ventoso. O segredo reside na capela de S. Bartolomeu. A próxima vez que estiverem quase a descolar enquanto atravessam a avenida, saberão que a porta da capela está aberta quando não devia. O moço acorrentado estará a correr pela beira-mar. “O vento é obra do diabo”. A razão pode ser esta ou então é o facto das ruas do bairro estarem orientadas para norte para arejar as casas do cheiro a mar.

As tradições mais peculiares das ruas modestas e esquecidas revelam o modo de vida dos moradores, no que acreditam e no que os levou a acreditar.

Estender da Roupa

A região da Beira-Mar é lembrada por muitos de diferentes formas. Quer seja pelas desavenças entre Marnotos e Ceboleiros, ou pelas suas casas coloridas.

Pelos seus moradores, é recordado por ser um local soalheiro. Contam que, na altura, não havendo outra forma de secar a roupa, mas também levados pelo tempo favorável, estendiam as suas roupas nos estendais das suas janelas. Este hábito, ainda parcialmente presente nos dias de hoje, deixa as ruas com variadíssimos retalhos de cor, dando-lhes nova vida, tornando-as numa paisagem sem igual.

Neste contexto, surge o sr. Evaristo. O sr. Evaristo, recordado como chefe da câmara e fiscal da altura, não gostava de ver as casas pitorescas do bairro típico tapadas pela roupa estendida. Por este motivo, e como tinha tal poder, multava os moradores que tinham as roupas estendidas à janela. Mas não era apenas este hábito que era repreendido pelo sr. Evaristo. Aos moradores também não era permitido sacudir os tapetes à janela.

Esta caricata personagem ainda pregava algumas partidas como vingança à desobediência. De entre elas, tirava a roupa do estendal, fazia-lhe nós e molhava-a.

Em contrapartida, os moradores elaboraram uma solução para escaparem à coima. O primeiro habitante a avistar o sr. Evaristo, avisava os restantes de modo a poderem recolher a sua roupa, sem que ele a visse. Esta artimanha ainda poupou uns trocos a alguns moradores.

A roupa à janela é sinal que os cagaréus ainda habitam a cidade.

Muralhas de Aveiro

Esta história remonta ao séc. XV. Após um incêndio que ocorreu no início deste século, o infante D. Pedro ordenou a construção de uma muralha. Na realidade, era mais um muro honorífico, para proteção não serviria pela simplicidade da construção. Apenas imponente nas portas, torres e na porção virada para a Ribeira do côjo, antiga designação para cais, pela necessidade de segurança. Nas restantes secções, assemelhava-se a um simples muro. Aponta-se que a razão para a sua construção tenha sido a vaidade e orgulho pela verdadeira vila burguesa que Aveiro seria na altura.

Apesar de não consensual, afirma-se a existência de oito portas nesta muralha: da Vila, do Sol, do Campo, do Côjo, da Ribeira, do Alboi, de Rabães e de Vagos. As portas da Vila, Ribeira e Vagos, sendo as mais importantes, possuíam porta dupla que criava um átrio solene.

A duração da obra ninguém sabe ao certo. O início foi em agosto de 1418. Mais de 30 anos depois, diz-se que a construção não estava concluída. Antes da edificação, existia uma única freguesia, a de S. Miguel. Depois, para além desta que seria a mais nobre, criou-se a do Espírito Santo a Sul e fora da muralha, a da Vera-Cruz e a da N. Sra. Da Apresentação. As últimas, em conjunto, formavam a Vila Nova, localizada a Norte, conhecida como zona de pescadores. Em S. Miguel, os moradores designavam-se de Ceboleiros, já os da Vila Nova eram os Cagaréus.

Devido à crise da Barra de Aveiro, o muro deixou de ser reparado e pouco a pouco as suas pedras foram caindo. Mas não foi este o seu fim. Algumas foram utilizadas nas obras da Barra, para a construção dos molhes. Esta obra, atualmente ainda de grande exigência técnica, na altura teria sido bastante desafiante. Foram necessários 6 anos para a sua conclusão e uma exorbitante quantidade de mão-de-obra. Depois de um período de grande crise económica e social, a reabertura da Barra revitalizou a região aveirense.

Retomando às pedras da antiga muralha, foram ainda usadas para a construção do antigo Liceu José Estevão, atual Escola Secundária Homem Cristo, e para os paredões dos canais da Ria. Os habitantes também usufruíram delas, usando-as para reparar as suas casas.

Mais tarde, quando o templo de S. Miguel foi demolido, ficaram apenas duas freguesias, Vera-Cruz e N. Sra. Da Glória. Separados por um canal e com alguma rivalidade à mistura, permaneceram as designações, cagaréus e ceboleiros respetivamente... mas isso já é outra história.

Das muralhas de Aveiro, hoje não há vislumbre, mas as suas pedras permanecem nas construções aveirenses. Onde ao certo? Ninguém sabe.

São Gonçalinho

No bairro da beira-mar, se fosse possível, era bem provável que os santos fossem convidados a opinar se o jantar necessitava de mais tempero. Seriam convidados a estar presentes nos aniversários, a regar as plantas dos vasos que partilham o espaço nas varandas com gatos e, quem sabe, até a assistir aos jogos do beira-mar, se gostassem de futebol. Aqui os santos são da família, são tratados por “tu”. É na união entre o sagrado e o profano, algures entre o humano e o divino, que se encontram as tradições das festividades em honra de S. Gonçalinho. No fundo, mais se assemelham a uma grande festa no bairro.

Pode ser sacrilégio e até perigoso afirmar que, afinal, o S. Gonçalinho, “o nosso menino”, não é de Aveiro nem por cá passou. Muitos defendem fervorosamente o contrário, que “passou, sim senhor!” por esta terra. Natural de S. Salvador de Tagilde, concelho de Guimarães, viveu na segunda metade do século XIII em Amarante. O frade dominicano escolheu levar uma vida eremítica e mendicante. Peregrinou até Roma e Jerusalém e voltou às suas origens sem bens. Morre a 10 de Janeiro, agora dia de S. Gonçalinho.

Para se ser santo é necessário um milagre e, ao que parece, ter muita lábia. Diz-se que foi graças a essa virtude que conseguiu arranjar os fundos para concretizar um dos seus milagres, a construção da ponte de Amarante, sobre o rio Tâmega. S. Gonçalinho é representado com uma bengala que, segundo a lenda, convertia rochas em vinho ou água quando nelas tocava. É-lhe atribuído também o milagre dos peixes. Relata-se o prodígio de ter conseguido convencer peixes a saírem fora de água para serem pescados e comidos. No final, as suas espinhas foram atiradas de volta à água, ganhando os peixes vida novamente. A este santo pede-se de tudo, desde a cura de maleitas físicas até à solução para os problemas do coração. Mas não abusem “do menino”, que ele é vingativo.

Manter o S. Gonçalinho feliz, sejamos sinceros, é um doce esforço. A memória defende que as festividades em sua honra acontecem desde 1875, embora o registo escrito se refira à sua ocorrência desde 1935. Organizadas pela Mordomia de São Gonçalinho, prolongam-se por um fim-de-semana alargado, o mais próximo de 10 de Janeiro.

Nestas celebrações, o pagar de promessas é sinónimo de festa. Pagam-se gulosas promessas cobertas de calda de açúcar, as cavacas, que são atiradas do alto da capela. Chovem toneladas de cavacas e alguns devotos chegam mesmo a atirar o seu peso em cavacas. Quem está no cimo, vê cá em baixo um mar de guarda-chuvas e redes que ondulam ao sabor do movimento das cavacas. Avista-se por entre os sorrisos, quem decida usar um capacete, pois as cavacas que se atiram, ao contrário das que se encontram nas pastelarias durante todo o ano, são duras e atingem uma velocidade considerável.

Apesar da controvérsia, há quem defenda que o S. Gonçalinho efetivamente passou por Aveiro e que, durante a sua estadia, atirava pão aos que se isolavam em ilhas quando tocados pela peste e daí até aos dias de hoje, a história materializou-se em algo mais doce.

Protagonizada pelos mordomos, realizada à noite dentro da capela, depois de se afastar os bancos do caminho, ocorre a Dança dos mancos. Nesta, os mordomos simulam que se desequilibram, cantam e dançam bamboleando como se tivessem dores ou problemas ósseos. Na verdade, estão a pedir proteção antecipada a S. Gonçalinho, que também cura doenças ósseas. Após o milagre da cura, os devotos oferecem as suas bengalas ao santo.

“Um Toque de Estranheza”

– uma história de Agnes

Tinha esta ideia de tentar viver no estrangeiro durante algum tempo, para me empurrar para fora da minha zona de conforto. Em 2010, cheguei a Aveiro para o que acreditava serem 6 meses. Contudo, ainda aqui estou.

Aveiro é uma cidade pequena fascinante. Na realidade, uma cidade grande pelos padrões da Letónia. Tem um belo encanto, com os canais e os barcos com toques artísticos que dão caráter ao cenário, que fazem o centro ganhar vida enquanto o tornam romântico e colorido.

Aveiro até tem um lado arrepiante porque nunca, na minha vida, vi um sítio onde o centro comercial fosse ao lado do cemitério. Ao pôr-do-sol, aqueles mausoléus seriam o cenário perfeito para filmar cenas de um filme de terror.

A Universidade de Aveiro continua a ser o meu lugar preferido para estudar. Tem a biblioteca mais bonita, diria até mesmo espiritual. A vista para a Ria de Aveiro e a luz do sol tornam-na mágica. É também onde conheci o meu marido. Assumi que ia voltar para a Letónia para terminar os meus estudos, e que a nossa relação eventualmente acabaria. Bem, não foi isso que aconteceu. Ele é a razão pela qual eu voltei para Aveiro 3 anos mais tarde.

Desta vez, deixar a minha vida na Letónia para trás foi muito difícil. De partir o coração, quando penso no quão difícil foi para a minha família deixar-me ir. Sabendo que eu estava a deixar a minha terra natal por aquilo que sabia que, no fundo, podia ser para a vida toda, comecei a ver Aveiro com outros olhos. Talvez de forma mais crítica, mais realista. Isto já não era uma aventura de 6 meses. Todos os dias, em todas os contextos, há ocasiões ou diferenças culturais que me fazem sorrir ou me deixam louca. Quero dizer, ainda acho estranho quando 3 pessoas na mesma sala se chamam João.

Sempre me senti acolhida, mas o sentimento de que sou estrangeira nunca me deixou. É difícil descrever, mas há regras não escritas e gestos inexplicáveis, palavras e atitudes que me relembram que não sou portuguesa.

Mas há tantas coisas aqui que me fazem feliz. A primeira é o número de dias soalheiros. Eu acho que sorrio mais aqui do que na Letónia por causa do sol. O oceano não para de me encantar. A minha paixão é a Costa Nova, com as suas casas de pijama, tão giras, tão únicas. Aprecio os dias de sol com ondas gigantes na Primavera e Outono, quando há menos pessoas na praia. Adoro o café e o cheiro que escapa das padarias quando passamos por elas.

Acredito que os Portugueses são das pessoas mais abertas e tolerantes do mundo. E, em geral, adoram crianças. Olho para o lado por um segundo e a minha filha de 2 anos está a tirar coisas das prateleiras do supermercado e a pô-las no chão. Uma senhora, pacientemente, apenas as punha de volta no sítio. Ainda nem mencionei as pessoas de mais idade, prontas a ajudar a minha filha a divertir-se com a confusão que criou.

Houveram muitas situações em que aprendi lições importantes e me reavaliei a mim e à minha atitude. Mas continuo a precisar de me relembrar de levar as coisas com calma.

Quando alguém me pergunta se me vejo a viver em Aveiro para o resto da minha vida, digo sempre que não. É assim que me sinto, mas há uma grande probabilidade de que assim seja. Aveiro é um local agradável para se estar e tem um lugar particularmente especial no meu coração.

“A Transgressão do Pensamento”

– uma história de Ahmad

Quando a guerra na Síria começou em 2011, eu tinha apenas 16 anos e estava pronto para me tornar um revolucionário. Gradualmente, a revolta contra o Presidente Bashar al-Assad tinha-se tornado numa guerra civil de grande escala e o meu pai estava à procura, com mãos e pés, de uma forma de me tirar do país. E conseguiu. Ele encontrou uma forma de eu estudar em Aveiro. Tinha de aceitar porque era isso ou mudar-me para estudar na cidade de Homs, onde a guerra estava a caminho. Era melhor ideia viajar 5000 kms e estudar em Portugal do que a uma hora de distância em Homs.

Eu vivia na capital, que era o sítio mais seguro para se estar. Com o começar da revolução, eu tinha uma visão de mudança. Estava envolvido da única forma que conseguia, numa escala bastante pequena. Não me vejo como alguém que tenha feito muito quando houve pessoas que se comportaram como verdadeiros heróis. Acreditava que algo poderia ser feito, tinha ideias. O que era um crime grande o suficiente.

O último ano que vivi na Síria foi o ano mais fantástico da minha vida. Havia um grupo disposto a mudar o sistema. Associei-me a pessoas fantásticas, víamos filmes, falávamos, aceitávamos as ideias uns dos outros. Havia alguma esperança, mas a pressão, incertezas e medos estavam a crescer com força. Depois, a maioria deles foi-se embora. Os dias estavam a passar e a esperança continuava a desvanecer. As pessoas começaram simplesmente a deixar a Síria. A este ponto, era claro para mim que, no que tocava ao assunto da Síria, era algo maior do que eu, maior do que a minha geração. A minha geração já estava a deixar o país e se a minha geração estava a escapar, não havia muito que pudesse ser feito. Dei o que tinha a dar e tudo ficou sem esperança. Quando a notícia sobre a bolsa de estudos chegou, tudo mudou da noite para o dia.

Nunca tinha viajado antes. 2015 viu o meu primeiro voo de sempre, o meu primeiro e único destino. Lembro-me que Aveiro estava enevoado quando cheguei, a minha cabeça estava igual. Não me lembro dos primeiros 2 meses, era tudo muito confuso. Era muito jovem. De repente, dormia numa cama nova, numa cidade nova, num país novo.

Depois de cinco anos, estou estabelecido em Aveiro. Estou a trabalhar como engenheiro civil numa grande empresa e tenho mais amigos Portugueses do que internacionais, mas, no geral, não sinto que pertença a locais. Tenho sentimentos e memórias sobre os locais e ou os adoro ou não. A maioria das minhas memórias de Aveiro são adoráveis. Já estive em muitas cidades, mas nunca senti o mesmo aconchego que sinto em Aveiro. Já estive noutros lugares e gostei, mas à noite é aqui que eu gosto de dormir.

Não sinto falta de nada em particular da Síria. Voltei lá em 2017 e confirmei isto. Não é o mesmo país. Mudou demograficamente e as pessoas nas ruas são muito diferentes. Têm um olhar morto nas suas caras. Não têm vida nenhuma. O tempo é irrelevante. Não interessa que dia é, que horas são, é tudo o mesmo. Acordas, vais buscar alguma comida e estás preocupado. Preocupaste o dia todo e a noite toda. E isto é a classe média. Não tenho a mínima ideia de como será para as pessoas pobres.

Já ouvi de muitos Portugueses que sou, às vezes, mais Português do que os Portugueses. Acredito que ambos, a comunidade local e os recém-chegados, precisam de se adaptar. Fiz um esforço de, não só aprender a língua, mas também de perceber a mentalidade Portuguesa e os costumes. Eventualmente, as pessoas pararam de mencionar a minha nacionalidade e começaram a ver-me como um ser humano. Isso foi o que eu sempre quis.

“Raízes Sorrateiras Crescem Sob Céus Noturnos”

– uma história de Ayman

Nasci e cresci no Egito. Em 2001, decidi que era hora de sair do meu país para encontrar uma vida melhor. Então, o Canadá tornou-se minha segunda casa oficial, onde estudei e trabalhei.

O tempo passa e, às vezes, há algo em ti que anseia por novas aventuras. Comecei a apaixonar-me pela ideia de me mudar para a Europa depois de algumas viagens a Itália, Portugal e Espanha. Eu estava determinado a mudar-me para o sul da Europa, onde senti que as pessoas viviam para aproveitar a vida, em contraste com o conceito norte-americano, onde parece que as pessoas vivem para o trabalho e as suas carreiras, e talvez apreciem a vida se tiverem oportunidade.

Em 2009, encontrei uma posição dentro de um projeto de três anos em Aveiro e decidi aceitar o desafio e mudar-me para Portugal. Supus que viveria aqui durante alguns anos e depois voltaria para o Canadá ou encontraria outro lugar. MEU! Eu estava enganado!

Não é fácil mudar para um país onde não conheces a língua. Essa foi uma primeira para mim. Eu não sabia uma única palavra em português quando cheguei em Aveiro. No entanto, os portugueses tentam verdadeiramente, tanto quanto conseguem, conversar contigo. Já vi isto por todo o lado em Aveiro, mesmo em pequenas lojas, com pessoas mais velhas que não sabem uma palavra em inglês. Eles tentam e tentam expressar o que querem, de todas as maneiras que podem. Eu adorei tanto isso. Eu senti-me bem-vindo aqui. Comecei a conhecer portugueses e a fazer amizades com muitos deles. Foi encantador.

Aveiro tem um charme único. É uma cidade adorável, com pessoas adoráveis que te acolhem sempre. Tens a praia a apenas alguns minutos de carro e podes apreciar a vista do oceano em qualquer época do ano. Sentes que conheces todos ao teu redor e eles conhecem-te, mesmo aqueles com quem ainda não falaste. Para alguém de uma cidade maior como o Cairo, às vezes fica pequeno demais. Também gosto que possas ir a qualquer sítio em Aveiro a pé. Eu não faço isso! Eu conduzo para todo o lado. Novamente, o efeito de menino da cidade grande.

Os finais do dia e as noites calmas de verão são as melhores. Uma das minhas coisas favoritas de fazer em Aveiro, especialmente depois de um longo dia de trabalho, é sentar-me num dos muitos cafés/bares e desfrutar de uma bebida refrescante enquanto aprecia o pôr-do-sol ou as estrelas em noites de céu limpo.

Ao longo dos anos, sem que eu me apercebesse, a cidade cresceu em mim, eu também cresci e me tornei parte de Aveiro. Eu encontrei amor aqui. Eu conheci minha esposa em Aveiro e casámos num local encantador fora da cidade. Viver aqui com minha esposa e nosso cão tornou fácil para Aveiro tornar-se o lugar para onde eu volto.

Não posso dizer que vou morar em Aveiro para sempre, acredito que ainda há novas aventuras para eu conquistar, provavelmente com novas cidades e países onde morar, e tenho outros dois lugares a que chamo de lar. No entanto, definitivamente, por enquanto, Aveiro é minha casa.

“A Hora Dourada”

– uma história de Josafat

Nunca esteve nos meus planos vir para Aveiro. Mas um dos meus tios sempre falou tão bem da cidade e da universidade que acabei por vir para cá estudar Administração Pública, a área de que gosto bastante. Não foi fácil chegar cá, há tantos requisitos e papelada que é preciso para obter um visto. Apesar disso, tudo pareceu muito repentino. Lembro-me de me preocupar e pensar se gostaria sequer da cidade. Hoje em dia, dificilmente me conseguem tirar de Aveiro.

Lembro-me de as pessoas dizerem o quão difícil iria ser. Eu gosto de enfrentar as coisas diretamente, não sou alguém que tenha medo de desafios. Não importa o quê, eu sei que posso sempre encontrar uma maneira de enfrentá-los e passar para o outro lado com alguma facilidade. O que é bom, porque eu tinha alguns desafios pela frente. Quero dizer, eu vim de um país diferente para morar sozinho numa cidade onde não conhecia ninguém.

Com o tempo, percebi que havia mais, mas quando cheguei em Aveiro, a primeira impressão que tive foi de que era uma cidade muito calma. A minha primeira semana em Aveiro foi muito diferente do que estava habituada, não tinha nada para fazer. Então comecei a explorar e caminhar pelo campus da universidade. Tirar fotos disso da universidade fez sentir-me bem. Explorar este novo mundo através de uma lente ajudou-me a descobrir uma beleza única. Eu acho que é uma das melhores e mais bonitas do país. Tudo está tão próximo que facilita a vida de quem aqui vive e estuda.

Algumas das minhas melhores lembranças acontecem na praça ou com meus amigos no bar dos estudantes. Lembro-me do meu primeiro jantar com todos do meu curso. Bem, eu lembro-me de parte. Podemos ter nos divertido um pouco demais. Até hoje, ainda não sei como acordei nas residências do campus. Eu nem morava nas residências! Foi fantástico. Eu também tenho uma música que foi escrita sobre mim e que as pessoas cantam sempre que jantamos juntos ou saímos. Podem pensar que é idiota, mas eu gosto realmente disso. Começas a construir ligações com a cidade e as suas pessoas. Eu sou parte de algo maior que eu aqui, isso faz-me sentir especial. Mas também nunca esqueço que cheguei onde estou hoje, em grande parte, devido à força e apoio de meus pais, familiares e amigos. E ainda sinto falta deles todos os dias.

Aveiro é uma cidade muito bonita e encantadora. E as pessoas aqui são tão afetuosas que me lembram Luanda, a minha cidade natal. Conheci pessoas que vejo mais como família do que apenas como amigos. Vivi experiências únicas e sou acolhido em todos os lugares a que vou. Estes têm sido os melhores anos da minha vida.

“A Completa Novata”

– uma história de Márcia

Ser imigrante nunca foi para mim. Alguns podem dizer que esta é uma afirmação ousada, outros que é uma afirmação ingénua. Suspeito que tenha a ver com a minha visão de principiante sempre em mudança. E podem, sim, chamar-me de principiante, mas não no que toca à mudança. Toda a minha vida tem sido à volta de mudança e adaptação. Tenho estado sempre em movimento e continuamente a descobrir novos lugares para chamar de casa desde pequena. Escolhi viver em Portugal porque me faz sentir em casa.

Quando decidi sair o meu país, temi que as minhas hipóteses de achar emprego fossem baixas, visto já não ser nova. Apesar disso, aqui estou eu, a fazer um doutoramento na Universidade de Aveiro. Estou a fazer o que mais gosto, aprender e ensinar.

Provavelmente já sabem que Portugal e o Brasil partilham a mesma língua. Falamos todos português, por isso é fácil nos perceber-mos uns aos outros, certo? Bem, eu pensei o mesmo. Foi só quando cheguei aqui que me apercebi das diferenças na comunicação. Deparei-me com imensas situações em que estávamos todos a falar português, mas a nossa maneira de nos exprimir era completamente diferente. Isto tem sido um grande desafio para mim.

Desde pequena que o meu querido pai me disse para olhar para o mundo como se este fosse um caleidoscópio de perspetivas, pelo que estou habituada a não ver só uma verdade e a estar ciente do rico e complexo mundo da interpretação. É assim que encaro a minha experiência em Portugal, sem preconceitos ou opiniões erróneas sobre o país e as suas gentes. Decidi abrir o meu coração e a minha mente e deixar a vida tomar o seu rumo.

Nunca me apeguei muito a lugares, só a pessoas. Estas transformam a paisagem em experiências multi-sensoriais. São as minhas raízes e, por isso, sinto-me sempre numa cidadã global, experienciando tudo como se pela primeira vez. Não sou uma imigrante, sou uma completa novata a olhar para uma tela branca, procurando expressar a linguagem do amor.

“Nostalgia da Espuma do Mar”

– uma história de Mariana

Naquele precioso momento em que abri o meu bem-viajado guarda-chuva, este foi perdido. Aveiro, precisamos mesmo de chuva e vento ao mesmo tempo? Aparentemente, sim. Foi o meu primeiro dia aqui. Eu até tirei uma fotografia para capturar a minha cara feliz cheia de entusiasmo de primeiro dia com esta abençoada receção chuvosa e ventosa! No entanto, a arte urbana mesmo fora da estação de comboios deslumbrou-me o suficiente para ficar tudo melhor.

O meu marido e eu procurávamos um sítio novo para viver desde que voltámos da Califórnia. A planear tudo com antecedência, sabes? Na verdade, estávamos a considerar a Austrália, Nova Zelândia ou outro país de língua inglesa.

Foi enquanto viajávamos pela Europa que acabámos por conhecer Lisboa. De alguma forma, parecia-se um pouco com a Bahia, a nossa casa. Algumas praças e ruas tinham o mesmo nome, e também consegues encontrar semelhanças na estética urbana, por causa da conexão entre Portugal e o Brasil. Começou a parecer certo. Depois, ligaram-me com uma proposta para um doutoramento na Universidade de Aveiro, precisamente na área de estudo do meu interesse. Adicionalmente, Aveiro tem o meu acompanhante de longa-data, o mar, extremamente perto. O meu marido e eu adoramos surfar, então só poderíamos escolher uma cidade com ondas espetaculares.

Imensas pessoas aconselharam-nos a não tomar um risco destes, “Ó, mas por que razão vão abandonar o vosso país quando estão tão bem estabelecidos cá?”, “Não vás, já tens cá os teus amigos, o teu trabalho, as tuas raízes aqui!”. Nós queríamos sair da nossa zona de conforto, queríamos crescimento pessoal e novos desafios profissionais.

Sem dúvida, a parte mais difícil? Deixar a minha família. Eu vim sozinha, o meu marido teve de ficar no Brasil a tratar de burocracias, para um sítio onde não conhecia ninguém. Claro, eu falava e interagia com pessoas a toda a hora, mas no final do dia, chegava a casa sozinha. Eventualmente, encontrei um grupo de igreja que me acolheu. Trataram-me como família, o que me ajudou a sentir parte da comunidade.

Quando vais viver para um país novo, tens de reconstruir e reorganizar a tua vida outra vez. Desde as necessidades mais básicas, como onde é que posso encontrar os produtos mais baratos ou o que será que devo vestir para este frio, até emprego e necessidades financeiras. Precisas de aprender como os sistemas de saúde e de educação funcionam.

Sinto falta do cheiro do mar. Gosto de ir à Costa Nova e à Barra, mas não é o mesmo. Na Bahia, podes ficar na praia até o final do dia, a relaxar na toalha de praia ou a nadar nas águas quentes. Tenho saudades disso. Aqui, tens um momento de 5 minutos de água gelada e vento e areia a voar por todo o lado. Mas, se deixas o teu país carregando as tuas memórias como um peso, se tu as vives como um lembrete das coisas que deixaste para trás, nunca conseguirás aproveitar a tua nova vida ao máximo.

Passo a passo, tu constróis um novo tu num novo país. Os teus hábitos mudam. Eu costumava comer tapioca constantemente, mas é mais difícil de encontrar aqui, por isso guardo-a para ocasiões especiais. Costumava vestir vestidos longos, mas agora eu gravito mais para roupa que me mantém quente. Muitos aspetos da tua vida têm de mudar. Tu adaptas-te. Para mim, a coisa mais importante é vir com uma mente aberta. Ainda estou a descobrir as nuances culturais, mas eu já adoro Aveiro.

“Vagueando sem Vergonha”

– uma história de Mina

Olá, sou a Mina e... sou oriunda do Iraque.

Sim, adivinhaste, palmeiras cheias de tâmaras (a fruta), o antigo local de nascimento da escrita, Saddam Hussein, as guerras...

Mina, em português, tanto pode significar mina de ouro ou mina mina. Como aquelas que explodem. Percebeste a piada, certo?

Nasci no Iraque, vivi alguns anos na Jordânia e depois vim para Aveiro, com treze (geralmente chamada de “idade da parvoíce”). Vivo em Aveiro há onze anos e, meu deus, que experiência de mudar uma vida tem sido.

Ainda me lembro do primeiro dia de escola. Saltei para uma nova turma, num país novo e apenas sabia dizer “Bom dia” e “Obrigada”. Os meus colegas receberam-me calorosamente em inglês, fizeram-me perguntas de vez em quando e eu senti-me agradecida por eles serem tão queridos comigo. No entanto, não nos tornamos amigos.

Os anos seguintes da minha adolescência foram difíceis. E é suposto ser assim, certo? Sentes-te incompreendido e anseias por proximidade, mas ainda assim afastas as pessoas. Principalmente quando aprender a língua tinha os seus altos e baixos e comunicar com as pessoas não era fácil para mim.

Eventualmente, a catástrofe passou e, lentamente, fui renascendo. A cidade estava diferente aos meus olhos. Há árvores por todo o lado, o que eu adoro, o quente brilhar do sol e o vento brincalhão que dança com os teus cabelos. Há sorrisos quentes e assimétricos em pessoas com corações assimétricos, tal como eu. Sorrimos uns para os outros e dizemos “Bom dia”, “Boa tarde”, “Como estás?”.

Eventualmente, encontrei os meus amigos. Alguns deles estão agora noutras cidades e a maior parte de nós não sabe onde estará ou para onde irá no futuro, mas está tudo bem.

Hoje posso dizer que adoro Aveiro, com honestidade e sem vergonha. Amo o parque. É aquele refúgio onde podes caminhar descalço sobre a relva, sentir suavemente o cheiro das flores no ar, admirar a beleza dos reflexos prateados da água do lago e apenas... ser. Os teus olhos e o teu coração vão saborear a preciosidade, se os deixares, claro. É como se fosse possível haver paz na terra.

As pessoas perguntam-me sempre: “és mais iraquiana ou portuguesa?”. Eu digo que não sei. Ainda tenho o sangue quente, as especiarias Árabes e um bocadinho de dança do ventre nas veias. Mas não concordo com a opressão no Médio Oriente. Portanto, respondo “ambos”.

Aveiro é a minha casa agora. É onde me sinto segura. É onde tenho os meus amigos, a minha família, as pessoas que amo. Mas ainda continuo a vaguear e a questionar onde me irá a vida levar.

“Encontrados em Estradas Paralelas”

– uma história de Nastya

A vida nem sempre corre como planeamos. Eu tinha a carreira dos meus sonhos, amava a cidade onde morava, tinha imensos amigos, uma vida cultural e social, ganhava o suficiente para viver como queria e viajava muito. No entanto, devido a reviravoltas imprevisíveis da vida, acabei por ficar em Aveiro.

Nunca sonhei viver no estrangeiro, adoro a minha terra natal, o que explica porque é que, quando inicialmente cheguei para um Serviço de Voluntariado Europeu, não vi Portugal como a minha casa, nem Aveiro como a minha cidade. Mas depois de 10 anos aqui, desenvolvi uma ligação especial com Portugal. Estudei aqui, comecei aqui uma família e até fui co-fundadora da Agora Aveiro. Portugal tornou-se a minha segunda terra natal.

Acho que os Portugueses têm muitas semelhanças com os Ucranianos, ainda assim, as minhas raízes continuam as mesmas. Ainda sinto saudades de casa. Tenho uma família e duas crianças aqui, mas Kyiv é o sítio onde me sinto como eu mesma novamente, embora a vida lá de momento não esteja fácil. Adoraria poder viver em ambos, Ucrânia e Portugal. É difícil dizer aquilo de que sinto falta exatamente. Provavelmente do “espírito” e atmosfera da cidade, as pessoas e a vida cultural, conversas profundas, a rotina atarefada e a minha família.

A única forma que encontrei de combater as saudades é de voltar lá com mais frequência, convidar os meus pais quantas vezes eu puder e falar ucraniano com os meus filhos. Leio literatura ucraniana, vejo filmes e ouço música, a guerra recente deu lugar a tantos livros incríveis, autores fantásticos e cineastas.

Senti-me acolhida em Aveiro desde o início, os Portugueses são uma das melhores pessoas para conhecer. Muito carinhosas e respeitadoras. Senti isso especialmente quando tive de fazer uma apresentação em frente a crianças portuguesas na altura em que eu mal conseguia pronunciar uma palavra na língua delas. As crianças foram muito gentis e curiosas quanto à minha personalidade. Mesmo quando os aveirenses não te percebem, mesmo assim fazem o seu melhor para te ajudar.

Sinto-me como uma pessoa local em Aveiro. Conheço as estradas todas, muitos atalhos, restaurantes locais e outros sítios onde apenas os Portugueses vão. Falo português e consigo facilmente tratar de qualquer problema sem a ajuda de um cidadão da cidade e tenho os meus próprios amigos com quem ter daquelas “conversas profundas”. De momento, sou igualmente uma cidadã de ambas as cidades. Promovo Aveiro entre os meus amigos com tanto carinho como o faço para Kylv. Por isso, sim, definitivamente tenho um sitio especial para Aveiro no meu coração.

“Um Coração sem Descanso”

– uma história de Nataša

Hoje, onze anos depois de me ter mudado para Aveiro, sinto-me mais local aqui do que na cidade onde nasci, no país que era, na altura chamado Jugoslávia.

Testemunhei algumas guerras e outros infortúnios no meu país, mas nunca pensei que viveria no estrangeiro durante muito tempo, principalmente porque adorava o meu trabalho, vivia bem, viajava muito e era feliz.

Mudei-me para Portugal porque quis e não porque tive de o fazer. E pelo melhor motivo possível, encontrei o meu amor aqui.

Para mim, para integrar completamente a vida da cidade, nunca foi suficiente apenas “existir” aqui. Senti a necessidade de me tornar um membro ativo da comunidade e percebi que, na verdade, não havia nenhuma instituição onde pudesse realizar plenamente esse desejo. Foi por esse motivo que, juntamente com alguns amigos, co-fundei a Agora Aveiro, em 2010.

Trabalhar na Agora Aveiro deu-me oportunidade não só de promover valores importantes e desenvolver projetos significativos, mas também de encontrar pessoas incríveis e ficar a conhecer muito bem a minha nova cidade, não apenas superficialmente. Também me tem dado muitas oportunidades para viajar e eu adoro isso, mas sabe sempre bem voltar a casa.

Há sete anos, tornei-me oficialmente “Portuguesa” quando obtive o meu passaporte Português. A verdade é que não me sinto particularmente portuguesa, mas também não me sinto sérvia. Há coisas que adoro em ambos os locais, mas o sentimento de patriotismo é algo que perdi no momento em que percebi a facilidade com que um país pode mudar o seu nome, as suas fronteiras, a bandeira ou a ideologia. Sinto-me uma cidadã global e uma local em vários locais pela Europa.

Adoro que Aveiro tenha várias coisas como festivais e eventos culturais a acontecer constantemente. Na Sérvia, uma cidade do tamanho de Aveiro é, geralmente, uma cidade fantasma, sem jovens, sem negócios inovadores e com poucos eventos culturais. Além disso, amo o oceano. Mesmo depois de uma década, continua a fascinar-me. Quando vou à Costa Nova, no momento em que piso a areia, sinto-me como se fosse a primeira vez que o vi, em 2007.

Aveiro é agora a minha cidade e, mesmo que não fique aqui para sempre, irá sempre ser uma marca significativa no meu mapa pessoal. Embora às vezes sinta falta da energia das grandes cidades, consigo lidar com isso viajando para Belgrado e outras capitais com bastante frequência. E aí, depois de alguns dias ou semanas de uma confusão hipnotizante é realmente bom voltar a este aconchegante porto de abrigo.

“Uma Casa Longe de Casa”

– uma história de Valentina

Sempre soube que queria viajar e experienciar a vida noutros países, e assim que eu tivesse a oportunidade, estudaria fora de Itália.

Eu casei com um homem muito aberto à mudança. O nosso país não nos oferecia muito em termos de estabilidade económica, então ambos queríamos ir embora. Propuseram-lhe uma posição na Universidade como músico acompanhante, e eu vim com ele. Acho que posso afirmar que somos migrantes económicos, mas no final do dia, foi amor que me trouxe para Aveiro. Mesmo tendo estudado Literatura Lusófona e Hispano-americana e Tradução Intercultural em Roma, nunca tinha ouvido falar de Aveiro. Hoje, é uma cidade que aprendi a conhecer e a apreciar.

Não foi muito difícil chegar aqui, porque sou uma cidadã da União Europeia, não tive de passar por muita burocracia. Não tenho recebido nenhum comentário negativo por ser italiana. Pelo contrário, parece que toda a gente gosta de Itália, mais que os próprios italianos. Toda a gente me pergunta se eu gosto de viver aqui e se eu prefiro Portugal a Itália. Apesar disso, não minto, foi difícil.

O primeiro ano foi duro. As pessoas locais são ótimas, mas existe algo único em não ser de cá que apenas os não locais experienciam e percebem verdadeiramente. Os estrangeiros acabam por se ajudar imenso mutuamente, talvez algumas iniciativas para nos conhecermos e partilharmos experiências tornaria isto mais fácil. O meu marido viveu aqui sozinho durante alguns meses, portanto tínhamos de encontrar um sítio onde poderíamos todos morar. Passámos imenso tempo à procura. Eu tinha um filho de 11 meses para cuidar, não tinha outra família nem amigos. Tudo isto fez com que pudesse facilmente ver Aveiro como um sítio deprimente.

Comprámos duas bicicletas e usámo-las para explorar a vizinhança. É uma maneira ótima para apreciar as paisagens, desde a universidade até aos edifícios históricos. Usamo-las para ir a todo o lado.

As crises fazem parte da vida de toda a gente, existem sempre desafios e obstáculos para ultrapassar. Dito isto, tive um acidente de bicicleta e parti o pulso. Algo que me trouxe tanta alegria foi também a razão por já não conseguir fazer as coisas que fazia com tanta facilidade antes. Isso deixou-me triste e deprimida. Mas ultrapassa-se.

Decidi continuar os meus estudos musicais seguindo um mestrado em música. Foi na Universidade de Aveiro que consegui fazer amigos. Atualmente, dou lá aulas de italiano enquanto termino a minha pós-graduação em Práticas Artísticas e de Comunidade. Eu estudava medicina antes de me virar para as artes. O meu pai estava muito doente, o que por si só é algo que pesa bastante, mas ter de encarar isso também na escola tornou-se demasiado. Precisava de uma pausa. O tempo passou, mas a minha curiosidade nunca desapareceu realmente, portanto estou a seguir um mestrado em Biologia Aplicada, onde posso explorar e combinar arte e ciência.

Tenho saudades da minha mãe. Gostaria que o meu filho pudesse passar tempo com ela. Também sinto falta dos meus amigos próximos e os laboratórios teatrais de que costumava fazer parte. Eu ainda volto a Itália para atuar com alguns deles, mas não é bem o mesmo. Mas eu tenho os amigos que fiz aqui e os sítios que se tornarem parte da minha vida diária. A família é a minha casa. O meu marido e o meu filho estão cá, por isso Aveiro é a minha casa.

“Para Além das Palavras”

– uma história de Valéria

Deixar o México foi uma experiência agridoce. Eu sabia que era o fim de uma época, mas ao mesmo tempo, não conseguia conceber completamente a enorme decisão que eu estava a tomar. Ainda assim, partir foi uma decisão minha. Felizmente, não fugia de nada. Estava excitada com as experiências e aventuras que me esperavam.

Não sou uma pessoa estática, não gosto de ficar num sítio muito tempo. Vivi em Leiria durante dois anos, mas só em 2016, quando vim para Aveiro, é que senti realmente que pertencia. Apaixonei-me imediatamente por Aveiro.

Subestimei o quão desafiante seria. Por ter uma boa noção da língua, visto que falo nativamente espanhol, pensei que seria fácil integrar-me na comunidade quando cheguei a Portugal.

No início, tinha dificuldade em perceber os cumprimentos. No México, damos um beijo e dizemos olá, outro beijo e adeus, simples! Em Portugal, dois beijos e um olá para toda a gente, mas nem sempre; dois beijos para dizer adeus, mas apenas em algumas situações. Tão confuso! Agora sinto-me mais à vontade, tudo flui melhor.

O meu marido tentou integrar-me na sua família, mas eu queria um grupo só meu. Foi só quando encontrei a SPEAK* que senti ter encontrado um lugar para mim neste novo país. Conheci pessoas que estavam na mesma situação que eu, a passar pelo mesmo processo de adaptação, pelo que partilhamos as nossas incertezas e medos. Sei agora a importância deste tipo de projetos. Foi por isso que, quando cheguei a Aveiro, decidi trazer comigo o programa e fundei a SPEAK Aveiro. Quero ajudar os que estão a passar pelo que eu passei.

Embora pequena, Aveiro é uma cidade multicultural. Uma das razões pela qual a adoro é porque há uma panóplia de nacionalidades a partilhar o mesmo local. Algumas estão apenas de passagem, outras por curtos períodos, mas todas contribuem para tornar Aveiro um sítio melhor. Gosto do facto de me sentir nem mais nem menos bem-vinda que os outros cidadãos. Acredito que ser imigrante aqui é mais fácil. As pessoas são amigáveis e estão tão acostumadas a estrangeiros que a sua presença já faz parte do dia-a-dia.

Na minha opinião, os aveirenses são afáveis e pacientes com os recém-chegados, ainda que não completamente dispostos a sair da sua zona de conforto. Tenta perceber o que os estrangeiros querem partilhar, mostra curiosidade para com a aventura de outrem e aprende com as suas culturas. Estes pequenos passos podem ter um impacto significativo nos que estão longe de casa.

De vez em quando, tenho desejos de comida mexicana e do clima maravilhoso, mas mais do que isso tenho saudades das pessoas do meu coração. Sinto falta de estar junto das pessoas que me conheceram a vida toda, aquelas com quem podes ser tu sem ter de dar explicações. Apesar da distância, mantenho uma relação de proximidade com as pessoas que adoro e sei que quando as voltar a encontrar, sentirei que não passou tempo algum. Nunca será o mesmo que estar lá, mas torna as ocasiões em que podemos estar cara-a-cara muito mais especiais.

Parte de mim teme que até me possa perder um pouco quando voltar à minha cidade no México, que é bem maior do que Aveiro. Acredito que vou conhecer Aveiro ainda melhor do que conheço Querétaro. Faço visitas guiadas da cidade que começam na Ponto do Botirão ou “Ponte do Laço”, se tivesse de escolher, diria que esse é o meu lugar favorito. Foi onde comecei a conhecer a cidade melhor. E quanto mais conheço, mais adoro Aveiro. Sinto-me 100% como uma local em Aveiro. Estou tão feliz por reconhecer isso.

Rosa Gadanho

Professora

Centro Escolar de Santiago

O saber transforma o lugar

Rosa não se considera um herói, mas admite que conheceu vários. “Com alguns deles aprendi muito”.

Rosa Gadanho, recentemente aposentada, foi durante mais de quatro décadas professora. Esteve ainda envolvida na criação das bibliotecas escolares no Município de Aveiro e foi bombeira, em tempos onde só homens exerciam a atividade. “Não queremos cá saias!”, foi a mentalidade que enfrentou e superou. Atualmente, Rosa faz voluntariado no Estabelecimento Prisional de Aveiro. Sempre preocupada com problemas sociais na comunidade, realça “estamos cá para fazer coisas!”.

Começou a sua carreira na educação especial, área em que trabalhou durante 36 anos. Acompanhou de perto a transição das crianças das CERCI’s (Cooperativa para a Educação, Reabilitação, Capacitação e Inclusão) para as escolas regulares. Rosa defende que “o lugar dos miúdos é ao pé de outros miúdos. A forma das pessoas se aceitarem umas às outras é viverem em comunidade”. Foi árduo, as escolas não estavam preparadas para estas crianças. “Algumas ficavam fechadas, sozinhas e isoladas enquanto os pais trabalhavam. Estamos melhor, mas ainda nos falta muito (...) ainda estamos muito longe de um lugar digno para elas”.

Os verdadeiros heróis são aqueles que,
apesar das dificuldades,
do desprezo e do preconceito,
conseguem levantar a cabeça
e ter uma vida digna

Foi na Escola Básica de Santiago que durante mais tempo trabalhou e se dedicou. “Foi uma batalha”, relembra. Uma escola, criada para responder às necessidades de um bairro “problemático” aos olhos de muitos. Um bairro preenchido com famílias com dificuldades, económicas e não só. “No início, as crianças do bairro foram frequentar a Escola da Glória e o impacto foi muito perturbador. Então os poderes instituídos juntaram-se e rapidamente criaram a Escola de Santiago. Toda a gente nos perguntava “porque querem ir para essa escola?”.” A luta contra o estigma e a imagem negativa atribuída ao estabelecimento foi algo que se mostrou frutífero. A criação do jardim de infância e da biblioteca, o foco nas questões ambientais e o esforço coletivo, ajudaram a fortalecer a ligação entre a escola e as famílias. Hoje, a Escola de Santiago nem consegue dar resposta a tanta procura.

E o que é um herói aos olhos de quem já viu muitos? “Para mim, os verdadeiros heróis são todos aqueles que, apesar das dificuldades, do desprezo e do preconceito, conseguem levantar a cabeça e ter uma vida digna. É muito difícil.

Rosa guarda consigo imensos momentos marcantes ao longo de tantos anos de trabalho. Relembra episódios atrozes que ninguém espera confrontar, mas foi nesses momentos que sentiu as “sinergias da comunidade” a intervir. “Nunca vi tanta gente a tentar encontrar resposta sem comprometer as crianças”, afirma acerca de um desses episódios.

Manuel Barbosa

Chefe dos Bombeiros

Bombeiros Velhos de Aveiro

A chama que não se extingue

Manuel Barbosa demonstra um grande dever cívico. Considera que ao ajudar qualquer pessoa, está apenas a fazer o que lhe compete. “Quando uma pessoa se coloca em risco para ajudar o outro, sem ter conhecimentos ou meios, será sempre um herói”.

Manuel Barbosa é Chefe dos Bombeiros “Velhos” de Aveiro desde 2000. Tendo começado o seu percurso como bombeiro em maio de 1979, completa 41 anos de serviço. “Desde que comecei a exercer a função, verifiquei uma grande evolução nas condições [do quartel, equipamento e serviços]”.

Como Chefe, Manuel começa o seu dia a orientar a equipa, garantindo que os serviços não se acumulam. “Temos também a prestação de socorro que tem que ser gerida. Tenho que garantir que não há nenhum congestionamento nestes serviços, seja de pessoal, equipamento ou tempo de resposta”.

Quando uma pessoa
se coloca em risco para ajudar o outro,
sem ter conhecimentos ou meios,
será sempre um herói

Ao longo dos muitos anos de missão, já passou por diversas ocorrências, desde incêndios a prestação de primeiros socorros. “Nunca ninguém está completamente preparado para isso”. De modo a se proteger e poder prestar auxílio, teve de aprender a não se apegar muito a uma situação, dado que “logo a seguir vem outra”. “Não é de todo fácil. O que mais me afeta é chegar ao local da ocorrência e haver crianças. É a parte mais emocional para qualquer bombeiro, porque as crianças nunca têm culpa. Muitos de nós somos mães, pais, avós e torna-se sempre algo emocional”.

Até hoje, o episódio que mais o marcou foi o incêndio florestal, de 1986, em Águeda. “Começámos a operação por fazer um briefing sobre o modo como iríamos proceder e dividimo-nos em grupos. Infelizmente, o incêndio cercou alguns de nós... Perdemos 13 bombeiros. O fogo foi mais rápido.” Quando conseguiram controlar o fogo e cessar o mesmo, “foi complicado chegar ao local e encontrar os corpos carbonizados de colegas com quem tínhamos acabado de estar a trabalhar lado a lado. Fica sempre aquele sentimento de que poderia ter sido qualquer um de nós. Perante o fogo o homem é um ser frágil”.

Apesar de todas as advertências, momentos complicados e horas longas que a atividade de bombeiro acarreta, o Chefe Barbosa não deixa o quartel tão facilmente. A sua filha e genro são também bombeiros. O sentido de camaradagem e espírito de equipa está fortemente enraizado. “É como uma família!”.

Margarida Gonçalves

Psicóloga

Unidade Clínica da Borralha

Ler as entrelinhas do silêncio

Para muitos, a ideia fantasiosa de um herói é a daquela pessoa que consegue fazer tudo e mais alguma coisa. Porém, Margarida Gonçalves pensa de outra forma. “Um herói, na vida real, não deve ser quem faz tudo, mas quem está presente naquilo que faz, com humildade, gratidão e compaixão”.

Margarida é psicóloga, com bastante experiência no contexto comunitário, social e com idosos. Atualmente, trabalha como psicóloga clínica, não perdendo, no entanto, o contacto com o ambiente social da psicologia, área que lhe interessa desde os tempos de faculdade. Afirma que o seu objetivo é “trazer a psicologia à rua, à comunidade”. Psicologia “sem estigmas e sem preconceitos, que tanto existem ainda hoje”, lamenta.

Só quem é louco, é que vai para o psicólogo”, continua a ser um dos principais preconceitos existentes. A desvalorização da doença mental e a dificuldade em pedir ajuda são fatores que dificultam o trabalho dos profissionais. A forma como a sociedade analisa e se comporta é também um fator determinante para a evolução dos comportamentos, “todos nós somos agentes de mudança”, afirma.

Todos nós temos algo
de novo a aprender com
todas as pessoas com
quem nos cruzamos

Margarida acredita, “todos nós temos algo de novo a aprender com todas as pessoas com quem nos cruzamos”. Coleciona na memória valiosas lições, fruto da experiência e do contacto, da ligação e da empatia. “Nem todos têm de sentir o que estamos a sentir naquele momento, naquele contexto”, aprendeu num dos episódios mais marcantes do início da sua carreira. Era Natal no lar, época em que todos se reúnem, família e amigos, e o lar se enche de animação. Porém, nem todos se sentiam assim. Margarida recorda como se aproximou de um dos idosos, sozinho e desanimado, “doutora, a festa é exterior, não interior”. Para o homem, era mais um dia, Natal ou não, em que não tinha a família em seu redor. “O meu coração tem muita tristeza”, continuou ele, momentos antes de lhe virem as lágrimas ao olhos. “Foi um banho de humildade. É necessário sermos humildes, gratos, olhar para a pessoa no seu todo e termos compaixão”, algo que a psicóloga reconhece estar em falta na sociedade.

Porém, nem tudo corre como planeado e há casos em que não se consegue ajudar. Quem faz a mudança “é a própria pessoa e esta pode não querer mudar”. Aqui destaca a influência da sociedade, a crítica e os olhares. Ao início, Margarida sentia uma revolta interior, mas “a prioridade são as emoções da pessoa, dar espaço e ter noção que a mudança de comportamento não é imediata”. Mesmo não resultando como planeado, o importante é “chegar ao final do dia e pensar se fiz o melhor que podia fazer. Se a resposta for sim, ótimo. Se não, amanhã é outro dia”.

O que faz Margarida mais feliz? A resposta é simples. Conseguir “fazer ver à pessoa que pode ser muito mais do que aquilo que acha que é” e ao final do dia, saber que “naquele momento, naquela situação, eu estive lá”.

João Henriques

Animador

Centro Local de Apoio a Migrantes

Ouvir contra a indiferença

Esta história, como o próprio fez questão de realçar, não é só sobre João Henriques, Assistente Social e Animador no Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM), mas sobre todos aqueles que ajuda diariamente e aos quais quer dar voz.

Há três anos e meio que João trabalha no CLAIM, é aqui que todos os dias presta serviço a migrantes e refugiados. Com vista à sua integração e autonomização no país, presta atendimentos, apoio social e promove atividades culturais. “A minha abordagem no dia-a-dia é, acima de tudo, a de escutar”, explica sobre o seu trabalho. Acredita que só assim poderá realmente colmatar as necessidades daqueles que procuram o seu apoio. Sobre o que o levou a escolher a profissão, afirma não saber explicar, talvez tenha sido por influência da mãe e irmã, também elas assistentes sociais. “Quando tenho consciência de mim, já era o que eu queria ser”, confessa.

Relatos de vidas turbulentas não faltam a quem lhe recorre, pessoas que parecem “por vezes invisíveis”, que, por não estarem integradas na comunidade, acabam por ter dificuldade no acesso aos serviços de saúde, educação e cultura. Pessoas que “precisam apenas de facilitadores que os possam apoiar na concretização dos seus objetivos”. É para estas que João trabalha, escutando os seus problemas e celebrando as suas conquistas. Por estar tão por dentro das dificuldades que enfrentam, sente a responsabilidade de lhes dar visibilidade, “isto não é sobre nós, é sobre as pessoas”.

Enquanto não houver uma maior
abertura por parte da comunidade
para integrar essas pessoas,
estamos a promover a exclusão social

As dificuldades não se sentem só no acesso a serviços básicos. Também se ouvem nas conversas racistas e xenófobas que, embora desiludindo João, permitem-lhe ter uma melhor compreensão sobre a sociedade para que nesta consiga intervir. “Enquanto não houver uma maior abertura por parte da comunidade para integrar essas pessoas, estamos a promover a exclusão social”. Assim, a história de João é a de um aveirense que quer dar protagonismo a todas as pessoas que, de algum modo, sofrem discriminação, tendo sempre plena consciência de que “não é através de um clique que as coisas mudam. É um trabalho de continuidade”.

João afirma não ser um herói, “parece-me um pouco exagerado”. Mas os heróis não usam capas nem têm superpoderes, são pessoas que na sua humildade nem se apercebem que para todos aqueles a quem dão a mão, não têm outro nome senão esse.

Ondina Pereira

Enfermeira

Centro Hospitalar do Baixo Vouga

Um coração que bate sem preconceitos

Quando questionada sobre o que é um herói, Ondina enaltece os “heróis das coisas pequenas”. Se cada um fizer a sua parte, se cumprir com excelência a sua missão, então “cada um é um pequeno herói naquilo que faz”.

Enfermeira há 25 anos, Ondina Pereira trabalha no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental (DPSM) do Centro Hospitalar do Baixo Vouga. Apesar de ter estado alguns anos no serviço de ortopedia, há 10 anos que integra a Unidade de Intervenção Comunitária, um dos serviços do DPSM. Aqui faz parte de uma equipa multidisciplinar que realiza visitas domiciliárias e presta apoio a utentes referenciados pela Unidade Hospitalar. “É um cuidado de proximidade”, refere sobre o seu trabalho, onde faz o acompanhamento e reabilitação de doentes mentais, visando a sua autonomia e integração na comunidade.

Queria fazer algo que me permitisse estar perto das pessoas” explica sobre o que a levou a escolher enfermagem. O gosto por esta profissão fez com que nunca se tenha arrependido ou duvidado da carreira que escolheu e afirma ser “enfermeira por vocação, na psiquiatria por paixão”. Contudo, não é apenas o interesse por esta área que faz de Ondina uma boa profissional, mas também o facto de valorizar cada utente como uma pessoa individual que vai para além do rótulo da doença que enfrenta. “O cuidado de tratar os outros como pessoas, independentemente de terem uma doença mental, seja ela qual for” é o mais importante para a enfermeira. Neste ponto, denuncia o estigma ainda existente na sociedade perante os doentes mentais e psiquiátricos, reforçando a necessidade da sua desmistificação. Defende que todos “vivemos numa balança entre a saúde e a doença mental”, e apesar de “encontrarmos mecanismos de defesa”, todos podem ter os seus momentos de desequilíbrio, pois “a doença mental é de todos”.

O cuidado de tratar
os outros como pessoas,
independentemente de
terem uma doença mental,
seja ela qual for

Por trabalhar e viver em Aveiro, é natural deparar-se com alguns destes antigos utentes na rua, depois de regressarem à vida em comunidade. É nestes encontros ocasionais e despropositados que, por vezes, se depara com utentes que se encontram instáveis. É sua responsabilidade sinalizá-los e encaminhá-los novamente para os serviços de psiquiatria. “Às vezes, a nossa missão como enfermeiros ultrapassa as paredes do hospital”.

Outra ideia que pretende desmontar é a imagem de uma “psiquiatria agressiva” com utentes violentos. Afirma que “a nossa maior arma é a comunicação”, realçando a importância de tratar com dignidade cada utente, de lhes prestar atenção, de os compreender e, com isso, acalmá-los. Para o conseguir fazer, não se deixa influenciar pela opinião que outros têm sobre os seus pacientes, independentemente de os considerarem violentos ou agressivos. “Somos nós que estamos ali naquele momento, não são os outros, somos nós”.

Rui Figueiredo

Agente Principal

Polícia de Segurança Pública

A serenidade de uma luz de presença

Para Rui Figueiredo, “um herói é alguém que faz um serviço para o qual não lhe pagam. Que cumpre a sua missão porque tem amor à causa”. Fazendo o seu trabalho por gosto, Rui certamente já ganhou o título de “Herói” para muitos daqueles que o encontraram pelo caminho.

Rui Figueiredo é polícia desde 1998. Iniciou a sua carreira em Lisboa, tendo sido depois transferido para Espinho, onde começou o percurso pelo qual se iria diferenciar. Aqui, fazia o acompanhamento de idosos, trabalho que continuou quando se mudou para a esquadra de Aveiro. Quando iniciou a sua função, os números de acompanhamento eram escassos, com apenas 4 casos sinalizados. Atualmente, o grupo aumentou para 90, o que demonstra o impacto que Rui teve.

Com uma apetência e um talento natural para ajudar o próximo, Rui lida também com vítimas de violência doméstica. Dada a fragilidade dos grupos de atuação, a preparação emocional é de extrema importância. Rui confidencia: “Tenho que ter bastante controlo emocional. Nunca sabemos como vai ser o nosso dia.” O papel de um polícia é o de tentar amenizar as situações, “em casos de violência doméstica somos como que o controlo do agressor e a salvação da vítima”.

Todos aqueles que
salvam a vida de alguém,
vão ser sempre um herói
para aquela pessoa

Após 22 anos de serviço com grupos de saúde mental delicada, Rui deparou-se com inúmeras situações que o marcaram. No entanto, destaca um episódio de uma criança vítima de violência doméstica: “A menina vivia com a mãe numa casa sem condições. Dada a situação de emergência, a criança foi retirada e encaminhada para a esquadra.” Dali a criança sairia para uma instituição. Contudo, a mãe advertiu a menina de que a assistente social a levaria para um lugar horrendo. Perante o medo que a menina sentia, Rui explica, “fiquei com ela até que o transporte chegasse”. Rui teve que se ausentar por momentos, mas ela recusou-se a ir embora sem se despedir dele. “Fez-me um desenho, que ainda hoje guardo. Abraçou-se a mim quando se foi embora. Fui para casa o caminho todo a pensar nisso.

Apesar de nem sempre ser fácil e de muitas destas ocorrências acabarem por ficar consigo, Rui Figueiredo não trocaria o seu trabalho. Quer seja zelar pelos outros, encontrar um idoso que a família não sabe o paradeiro ou apoiar vítimas de violência doméstica, “o nosso trabalho é estar presente e intervir”.

Micaela Oliveira

Médica de Família

Extensão de Saúde de Oiã

O peso de um ombro amigo

No meio de uma crise pandémica, “médico” e “herói” são termos quase sinónimos. Apesar de concordar, Micaela Oliveira, médica de família, defende que “não é preciso ser médico para se ser um herói”. Para si, um herói é “alguém que consegue fazer a diferença na vida dos outros. Pessoas que, com gestos maiores ou menores, conseguem melhorar o dia de alguém”. Acredita que qualquer um pode ser um herói, “quer na sua profissão, quer com o vizinho do lado”, o importante é “perceber que alguém está a precisar de nós” e ajudar.

Com o seu dia a dia “virado do avesso”, Micaela refere as mudanças sentidas no trabalho, despoletadas pela pandemia. “Para além das consultas presenciais, temos também as consultas por telefone e email”. É ainda da sua responsabilidade o acompanhamento telefónico de doentes COVID-19, tanto confirmados como suspeitos. “O trabalho aumentou para o dobro”, explica a médica. A situação atual trouxe ainda outras mudanças no seu quotidiano a um nível mais emocional. Não acredita que “o trabalho acaba na porta do centro de saúde”, por isso, inevitavelmente, as emoções de um dia de trabalho permanecem no seu pensamento. Afirma que agora é mais difícil, “estamos continuamente em risco. Venho para casa a pensar: será que eu estou a contaminar a minha família?”.

Micaela refere existir ainda alguma disparidade de opiniões no que diz respeito ao trabalho dos médicos de família, nomeadamente no reconhecimento da importância desta especialidade. “Quem tem uma boa relação com o seu médico de família, reconhece a importância do nosso trabalho, mas infelizmente há ainda a perspetiva de que só os médicos do hospital é que resolvem os problemas”.

Temos de tudo, pais que quando
o filho nasce nos mandam fotografias
a dizer que correu tudo bem,
e filhos a lamentar
“infelizmente o meu pai acabou de falecer”

Sobre o que a levou a escolher a sua especialidade, revela que procurava algo “generalista e abrangente”, no qual tivesse a oportunidade de contactar com crianças. Mas refere que a escolheu principalmente pelo facto de poder interagir com diferentes gerações de uma família e acompanhar a sua construção e crescimento. No entanto, existe ainda o outro lado, o dos idosos que começam a estar sozinhos. “Temos de tudo, pais que quando o filho nasce nos mandam fotografias a dizer que correu tudo bem, e filhos a lamentar “infelizmente o meu pai acabou de falecer”. É um trabalho de extremos”, conclui.

Apesar de acompanhar várias famílias, Micaela confidencia “não guardo uma família em especial, vou guardando histórias”.

Centro Social Paroquial da Vera Cruz

Resiliência calma mas constante

O Centro Social Paroquial da Vera Cruz (1971) é mais conhecida pela comunidade pelo seu trabalho com crianças e idosos, no entanto, na verdade, esta instituição tem vários serviços e projetos nas mais diversas áreas. A título de exemplo, o projeto “Alternativas”, na área de intervenção social para jovens com vulnerabilidades e que tem por objetivo sensibilizar e trabalhar com eles na prevenção de comportamentos aditivos. Também como exemplo, temos o CLAIM que oferece ajuda a migrantes.

A solidariedade deveria ser algo natural. Uma responsabilidade básica dado que vivemos em sociedade.

Na opinião da Dra. Paula Hipolito do CSPVC, a pandemia trouxe à luz algumas realidades cruéis e vulnerabilidades de que a maioria das pessoas nem estavam conscientes. Num lado positivo, também despertou a necessidade de ajudar os outros.

Na CSP Vera Cruz aceitam-se bens como ajuda, mas também voluntários. A primeira condição é fazê-lo de forma consciente e respeitar as famílias e beneficiários em geral.

Quando se trata de solidariedade em geral em Aveiro, a Dra. Paula Hipolito chama a atenção para o facto de haver falta de melhores e mais eficazes respostas em algumas áreas, como por exemplo no que toca os idosos e a saúde mental. Manifestou preocupação acerca das condições em que muitos idosos vivem em Aveiro. Outra área que carece de serviços é a saúde mental, explicou a Dra. Paula dizendo que “por vezes, só o encontrar um emprego para alguém não é a solução.”, sublinhando que se uma pessoa não está apta para o executar devidamente e não for funcional na sociedade, é necessário um outro tipo de apoio.

Quando questionada acerca das áreas e tópicos que são menos explorados na nossa região e quais aqueles que são mais difíceis de serem aceites e de sensibilizar a população para, a Dra. Paula diz que na sua opinião é tudo o que seja relativo às comunidades ciganas, porque ainda existe muito preconceito em relação a esta comunidade.

Devo ter uma confiança excessiva acerca de resolver problemas sociais. Considero que resolver um problema não é de todo difícil, é apenas uma questão de prioridades.

Acerca da cooperação entre organizações em Aveiro, a Dra. Paula Hipolito sente que é fácil comunicar com outras organizações mas sublinha que “uma rede social de contactos mais dinâmica e coesa seria uma ajuda”.

Os serviços da CSP Vera Cruz são gratuitos, com exceção do Jardim de Infância. Este os pais pagam consoante as suas possibilidades salariais.

Algumas das áreas que necessitam de ser mais trabalhadas são as dependências, em especial, na sua opinião, a dependência digital e em paralelo a necessidade de educação para a literacia digital.

Por fim, a Dra. Paula deixa-nos com um comentário acerca de como pensa que uma resposta social pode ser eficaz:

Tem de se prolongar no tempo, e não ser baseada em ações pontuais, deveria ser vista como trabalho em progresso em todos os aspetos relativos a um ser humano. Por vezes, pessoas que trabalham no sector social ficam cansadas e isso não pode ser uma opção. É uma jornada em busca de resiliência e humildade, acreditar que nas pessoas e encará-las como pessoas e não o problema que representam. A melhor coisa que pode acontecer a alguém que trabalha em intervenção social é quando o seu trabalho não mais é necessário, já que isso significa que as pessoas adquiriram as ferramentas para estar em harmonia consigo mesmas e com o mundo exterior.

AMA - AMigos do Abrigo Quintã do Loureiro

Um grupo de voluntários entusiastas que têm vindo a ajudar
os nossos amigos de quatro patas que foram abandonados ou perdidos

Há muito a dizer sobre a AMA - Amigos do Abrigo Quinta do Loureiro, são um grupo de voluntários entusiastas que têm vindo a ajudar os nossos amigos de quatro patas que foram abandonados ou perdidos.

Todo o abrigo foi construído através de trabalho voluntário e os cuidados dos patudos são também assegurados através de voluntariado puro, tendo como recompensa o bem-estar dos cerca de 80 patudos. Na AMA contam com os donativos de quem quer ajudar e de recolhas em supermercados, por exemplo. Todos os dias o espaço dos animais é limpo, a água renovada e a ração reposta. Contam com muitos miminhos e, sempre que possível, com passeios. Tem sido feito um ótimo trabalho, mas há sempre espaço para melhorar.

A AMA admite que o seu objetivo é que "todos os patudos encontrem um lar e uma família que lhes dê todo o conforto que merecem porque sem adoções, o espaço mantém-se lotado, tentando dar sempre a melhor qualidade de vida aos que se encontram no abrigo”.

Existem várias formas de ajudar, como tornando-se voluntário, através do apadrinhamento de um patudo (8€/mês ou 1 saco de ração/mês), tornando-se sócio (12€/mês), vindo visitar o abrigo e passear os patudos e, claro, adotando ou tornando-se família de acolhimento temporário. Também dá para ajudar em recolhas de alimentos em supermercados ou eventos, como, por exemplo, o mercadinho de Natal ou Feira de Março.

“Somos voluntários de diversas faixas etárias, vivências e profissões diferentes. No abrigo, tentamos criar um ambiente o mais familiar possível, proporcionando aos animais um espaço acolhedor, muitos mimos, passeios agradáveis e banhos periódicos. Garantimos a medicação e idas ao veterinário a todos os que necessitam. Acompanhamos sempre todas as adoções, garatindo que se trata de uma ação ponderada, responsável e para a vida toda.” - explicam os voluntários.

Nada explica melhor o espírito deste local que o texto que uma das suas voluntárias, a Leonor Afonso, escreveu: O AMA é o melhor lugar onde se pode estar. Eu fico muito feliz por saber que estou a ajudar cães que precisam de ajuda. Eles são mesmo muito fofos. Adoro dar festinhas e fico mais feliz do que o Caramelo na hora do patê. Acreditem em mim, ele é louco por patê. Os voluntários são simpáticos e eu divirto-me muito. Estou sempre a pensar nos cães do abrigo e gosto de saber sempre o que se passa com eles. Uma das minhas partes favoritas são os passeios; levo sempre o mesmo cão, o Barbas. Ele é o meu cão favorito do abrigo e gostava de o poder adotar um dia. É um menino lindo e meigo, como todos os outros, é muito fofo e alegre. O seu melhor amigo é o Messi e também está à espera de um lar. As coisas mais lindas do mundo precisam de ajuda. Todos podemos ajudar. Há sempre um abrigo perto de nós a precisar de ajuda. Ser voluntário é o melhor do mundo.

A AMA não tem morada, é em Quintã do Loureiro, Aveiro (coordenadas de GPS: 40.667661, -8.587619).

Associação BioLiving

A natureza é de todos e para todos

A BioLiving é uma associação sem fins lucrativos, alicerçada no lema “Natureza e Educação para Todos”. Tem como objetivos principais:

  • Promover a sustentabilidade;
  • Incentivar a cidadania ambiental e a participação pública na defesa dos valores naturais;
  • Dinamizar a economia social;
  • Promover a inclusão, a paz e a solidariedade, utilizando como mote a educação, os recursos naturais e a proteção da natureza;
  • Disponibilizar acompanhamento nas áreas da floresta, biodiversidade e educação ambiental.

Mas essencialmente demonstrar que a natureza é de todos e para todos.

Apesar das ações práticas de conservação da natureza e restauro de habitats serem uma componente fulcral do trabalho da BioLiving, eles acreditam que é necessário educar e formar as comunidades para a sustentabilidade e cidadania, tanto através de momentos de aprendizagem não-formal, como através de ações de formação técnico-científica no domínio da proteção da natureza e biodiversidade.

Falámos com a Sofia Jervis da BioLiving, que nos explicou que os principais desafios com que a associação se depara estão ligados a em Portugal ser muito difícil para uma organização sobreviver porque os apoios disponíveis são muito limitados, e o ambientalismo em Portugal ainda não é considerado uma prioridade.

A comunidade local pode envolver-se e ajudar a BioLiving na sua missão de diversas formas:

Para além de haver voluntários em campo, também precisam de voluntários para eventos, no que toca a trabalho administrativo e design. São tarefas que são maioritariamente feitas por voluntários que passem mais tempo connosco - têm diferentes tipos de responsabilidades. É, igualmente, difícil garantir recursos humanos para atividades de marketing e estas são importantes. Não chega apenas ter um website, temos de mantê-lo e para tal necessitamos de apoio de alguém das tecnologias da informação.

Os interessados podem contactar a BioLiving via email, Instagram ou Facebook. Devem enviar o CV, indicando em que área podem ajudar.

A Sofia deixa-nos uma mensagem final para a nossa comunidade local e, quem sabe, futuros voluntários:

Saiam do vosso sofá e façam algo. Ser um cidadão ativo e envolvido, fazer parte de associações e fazer outro tipo de atividades, que não estudar e lazer, é importante. Temos de nos envolver, ser parte de algo, tentar, escolher uma associação ambiental ou social, trabalhar com crianças, com idosos, o que seja, mas estar envolvido e conhecer o mundo através destas experiências faz uma grande diferença!

Centro Social e Paroquial de Angeja

A contribuir para o bem-estar

O Centro Social e Paroquial de Angeja tem como missão contribuir para o bem-estar dos seus clientes, através de um conjunto de serviços prestados com qualidade. Promover o desenvolvimento social, através de uma intervenção focada nos problemas sociais do concelho, apoiando a comunidade/públicos vulneráveis, reduzindo desigualdades.

A Instituição tem respostas sociais, nomeadamente, Serviço de Apoio Domiciliário, Centro de Dia e Centro de Convívio, dirigidas à pessoa idosa com vulnerabilidades diversas condicionantes do seu bem-estar, qualidade de vida e autonomia. A este nível, presta apoio às atividades de vida diária dos clientes, nomeadamente, alimentação, higiene pessoal e habitacional, cuidados de imagem e tratamento de roupa. Dinamiza atividades lúdico-recreativas e socioculturais. Apoia 70 pessoas e suas famílias.

Na área da infância, promove condições para um desenvolvimento integral e harmonioso, através do Centro de Atividades de Tempos Livres, com 20 crianças, no qual desenvolve atividades lúdico-pedagógicas e apoio ao estudo. Procura promover mudança social, apoiando as crianças e jovens das comunidades ciganas do Concelho, fomentando a sua inclusão social e diminuindo desigualdades sociais.

A Filipa Almeida, do CSP Angeja, falou-nos principalmente do projeto Olá Ritmos desta instituição. Atualmente, têm cerca de 270 participantes, entre os quais, cerca de 63 participantes diretos e 204 indiretos. Como participantes diretos entendem-se o público prioritário do projeto, nomeadamente, as crianças e jovens de etnia cigana. Os participantes indiretos são os familiares e a comunidade em geral.

Consideramos que todas as atividades, em determinado momento, tiveram algum impacto para os nossos participantes. Neste sentido, destacamos o desenvolvimento de competências pessoais e sociais, a partir do Ateliê Lúdico-pedagógicos; o apoio às famílias, a partir da Intervenção Familiar; o apoio ao estudo; o desenvolvimento de competências digitais, onde se engloba, o Ateliê de Informática, o Curso de Iniciação às TIC e a Oficina Audiovisual e Fotografia; o diálogo intercultural, a troca de saberes e experiências entre ambas as comunidades (majoritária e minoritária), destacando aqui a Oficina de Saberes; a importância da diversidade cultural, recorrendo à música e à dança, a partir da Oficina de Música e Dança; e, por fim, a sensibilização sobre os direitos e deveres de cidadania fomentando a inclusão social e a motivação para a participação social, onde se destaca as Ações de Sensibilização para a Participação e Cidadania. Para além das presentes atividades, o plano de atividades de projeto também assenta em outras atividades, nomeadamente, o Clube “Olá_Ritmos”, as Oficinas de Trabalho com Agentes Educativos, a Rádio Escolar e a Associação de Estudantes.

A principal necessidade sentida é a falta de recursos humanos, tendo em conta que têm um elevado número de participantes e também diversas atividades afetas ao projeto para desenvolver. Além disso, a falta de recursos materiais, nomeadamente, a nível dos transportes também é uma das dificuldades sentidas. Esta necessidade deve-se ao facto de intervirmos numa grande área do concelho de Albergaria-a-Velha, na medida em que os participantes vivem espalhados por várias freguesias, com uma distância significativa entre estas. Contudo, de modo a combater esta dificuldade há um reforço do apoio da entidade promotora e Gestora, o Centro Social Paroquial de Angeja.

A divulgação do nosso projeto é de facto mais uma das dificuldades sentidas pela equipa, o que se deve às características do público com o qual intervêm, pois ainda são muito colocados à margem pela sociedade em geral. De modo a combater esta dificuldade, dão ênfase a atividades que promovam o diálogo intercultural e a partilha de saberes e experiências entre ambas as comunidades, maioritária e minoritária.

Se tivéssemos que resumir o que é trabalhar neste projeto em poucas palavras, sem dúvida que seriam dedicação, adaptação, aprendizagem e versatilidade. O dinamismo, a aprendizagem contínua com os nossos participantes e a dedicação, afeto, apego e cuidado que sentimos por estes, são palavras-chave que caracterizam o nosso dia-a-dia. Podemos mesmo afirmar que nunca um dia é igual ao outro e que somos constantemente colocados à prova. O diálogo intercultural, a desconstrução de mitos associados às minorias étnicas, o sucesso escolar, o combate do absentismo e a inclusão social são os pontos principais do nosso projeto. Deste modo, a participação ativa da comunidade em geral é um dos pontos a melhorar em futuros projetos.

CSP Angeja aceita voluntários. Qualquer pessoa pode candidatar-se a voluntária. Para isso basta entrar em contacto através do email da instituição.

Mon Na Mon

Solidariedade e multiculturalismo de mãos dadas

A Associação Mon Na Mon é uma associação de filhos e amigos da Guiné-Bissau que se constitui como uma organização laica, de carácter humanitário, sem fins lucrativos e de ajuda mútua. “Mon na mon” em creoulo significa algo como “de mãos dadas”.

Os principais objetivos da associação são a criação de espaços de encontro multicultural, promover a interculturalidade, criar conexões entre pessoas e uma imagem positiva relativamente aos imigrantes, mas também oferecer apoio àqueles que precisem - seja na escola, na universidade ou na vida em geral.

A associação dá casa a um grupo cultural que promove danças tradicionais da Guiné Bissau, assim como de outros países africanos.

Há, também, um espaço de estudo, no qual voluntários oferecem ajuda, uma vez por semana, com os trabalhos de casa, sendo que o objetivo é ter mais voluntários e mais horas dedicadas a este apoio.

“Este apoio é importante, visto que uma das principais barreiras na escola para os jovens que falam crioulo é a língua portuguesa. Muitas vezes não são bem sucedidos na escola dado este fator, ainda que o crioulo possa ser parecido com português em certa medida.” - explicaram-nos os intervenientes da Mon Na Mon, sublinhando que deveriam haver mais oportunidades para trocas culturais em Aveiro, já que isto poderia suscitar o interesse dos locais pela música, gastronomia e costumes africanos.

Espera-se que novos projetos surjam em breve na Mon a Mon. Estão à procura de parcerias de trabalho, mas também a receber voluntários, de forma que possam proporcionar mais e melhores serviços para quem necessite. Entretanto, continuam a trabalhar naquilo em que acreditam: encontros interculturais e solidariedade.

Se gostarias de te juntar à Mon Na Mon, por favor contacta-os via email.

Florinhas do Vouga

Um símbolo de solidariedade em Aveiro

“Florinhas do Vouga” é certamente o símbolo de solidariedade em Aveiro. Esta instituição foi fundada em 1940 pelo Bispo D. João Evangelista de Lima Vidal. 80 anos mais tarde, é a IPSS mais conhecida na nossa cidade, oferecendo diferentes respostas aos mais variados problemas sociais. Hoje, contam com 75 trabalhadores e a ajuda de 110 voluntários

Esta instituição atua, principalmente, na Freguesia da Glória, onde se situa um dos mais problemáticos bairros sociais da cidade (Bairro de Santiago), ainda que, sempre que necessário, também dêem resposta a pedidos de freguesias vizinhas e subúrbios da cidade. Trabalham com crianças e juventude, população envelhecida, famílias e comunidade, assim como problemas de vício em drogas.

Em conversa com a Andreia Ruela, das Florinhas do Vouga, ela falou-nos um pouco da visão recente do impacto da instituição na comunidade local:

Sentiu-se a ausência prolongada do nosso serviço percebeu-se o real impacto de existir aquela rotina, a falta das atividades de estimulação da motricidade e cognitiva; as famílias nem sempre têm capacidade de suporte, perdem autonomia, lidar com esta dependência também desgasta emocionalmente. A pandemia trouxe uma nova realidade a que as famílias não estavam habituadas.

A existência de famílias numerosas com diversos problemas e sem salário, que dependem de apoios sociais e são em geral famílias em situação vulnerável, levou a que a instituição atuasse como mediador com o Programa Comunitário, de forma a ajudar aqueles que precisam e procurar sinergias para que se possa otimizar os recursos existentes e responder a emergências sociais.

Alguns exemplos deste programa são o projeto “Mercearia e Companhia” que dá apoio a cerca de 200 famílias por mês, com alimentação, roupas e outros itens, e a ação “Ceia Quente”, que distribui diariamente alimentos aos sem-abrigo de Aveiro.

Um outro desafio que enfrentam trata-se da saúde mental da comunidade. Não sabem por vezes para onde encaminhar, ainda que tenham uma parceria com uma neuropsicóloga, sentem falta de mais respostas e veem pessoas cada vez mais novas a precisar desta ajuda; começam a aparecer distúrbios como bipolaridade, depressão, ansiedade, e não sabem para onde encaminhar, “às vezes não há a resposta adequada, não se consegue dar a resposta adequada”.

Ainda outra preocupação das florinhas e desejo é trabalhar a questão da alimentação, sentem que ainda não estão a trabalhar nesta área como gostariam. Muitas famílias aparecem com distúrbios alimentares como obesidade, anorexia, que se fala da fome mas não se fala da pobreza nutricional.

O problema é que os cabazes que fornecem não são tão nutritivos como gostariam de dar às famílias; as famílias muitas vezes têm baixos rendimentos financeiros e o que recebem é graças à União Europeia e Banco Alimentar, mas são coisas congeladas e enlatadas. “É útil porque logisticamente temos de preparar todos os dias muitas refeições mas há o desejo de nos associarmos a produtores locais, estamos a descurar o lado ambiental e económico. É um caminho difícil e uma gestão difícil porque precisamos de arranjar a parte logística para acomodar os produtos que chegam e também trabalhamos na incerteza do que os produtores possam ter.”

No que toca à colaboração com diferentes associações locais, as Florinhas do Vouga estão sempre abertas a isso. Andreia Ruela diz que é importante identificar necessidades que são transversais às diversas associações locais e partilhar recursos entre estas.

Em relação às atividades com outras associações, também reparamos sempre no impacto, fica marcado, fica com as crianças, fica com os utentes. Nem que sejam pontuais, as atividades que tivemos feito com outras associações são sempre desafiantes e é importante a nossa instituição também se sentir desafiada e abrir portas a colaborações. Fizemos com a bio living a sementeira de bolotas com as crianças e são sempre atividades muito positivas, também fizemos pegadas de animais selvagens em gesso... Por exemplo os origamis feitos com a Agora Aveiro foram bons, porque produzimos origamis aqui e foi uma ação pontual que, no entanto, depois se reproduziu e se fez várias vezes, juntámos nessa atividade crianças, idosos, mobilizamos grupos diferentes, valências diferentes. Há partilha de recursos materiais, mas também gostávamos de ver partilha de recursos humanos, espaços... As associações necessitam de ser desafiadas neste sentido.

Há muitas coisas na lista do “A fazer” das Florinhas do Vouga, não obstante, há ainda mais coisas a apontar na lista do que já foi feito. Em termos gerais, esta Instituição adotou uma estratégia eficaz, preventiva, de promoção e inclusão da sua população alvo e assim tencionam continuar a lutar por um amanhã melhor para todos.

A Florinhas aceita voluntários e ocasionalmente necessitam de diferentes bens (roupa, produtos de higiene, etc.). Procuram-se voluntários para as diferentes áreas de resposta social, tal como ajuda nas ceias, apoio ao estudo, competências digitais... Fica atento, segue a sua página de Facebook ou entra em contacto via email.

Amélia Neves

Sento-me com Amélia, que me diz não saber o que dizer sobre si. Esta é uma história como tantas outras. Uma história com amor, com viagens, uma história de vida. E porquê contar esta em específico? Porque não contar esta em específico? É essa a questão que vos coloco. Em cada vida se encontra um livro à espera de ser lido, uma nova história para conhecer. E a de Amélia não é exceção.

Amélia está pelo Solar das Camélias há 7 meses, gosta muito de conversar com uma senhora que também por cá anda, diz serem boas confidentes. Desta vez, a companhia para conversa foi diferente, mas foi com gosto que partilhou a sua história comigo.

Nasceu em Angeja, Albergaria a Velha, onde teve “uma infância muito boa”, partilha com um sorriso tímido. Cresceu numa família de 6 irmãos, com quem jogava à “macaca” e ao “botão”. Já adulta, jogava à macaca com os netos e de “pés na terra”, que “a terra faz bem aos pés”, algo que a filha sempre aprovou bastante.

Estudou até à 4ª classe, o que possibilitou que aprendesse a ler. Hoje em dia, conversa muito, lê (gosta muito de ler) e dá os seus passeios para manter as pernas ativas. Uma outra utente emprestou-lhe um livro, “Misericórdia” da Lídia Jorge, e está a gostar muito de o ler. “O meu genro também gosta muito de comprar livros para ler nas férias”, conta-me, e pergunta-lhe que livro gostava de ler. Em casa tem muitos livros e quando lá for quer trazer alguns. Às vezes fogem-lhe as palavras e já não as consegue usar, mas “está tudo bem”, encara isso com naturalidade.

Viveu em casa dos pais até casar. Casou-se com 19 anos, em outubro, “ainda os meus pais tiveram de dar consentimento; naquele tempo era assim…” recorda sorridente. Naquele tempo a vida era um pouco difícil, antes de casarem, só se viam uma vez por ano em agosto. De resto namoravam por cartas. O seu marido, na altura ainda só um amigo, morava na rua dela e quando saíam da escola (que eram separadas, não mistas) ele encostava-se a ela e lá surgiu o primeiro namoro. Namoravam 20 dias pessoalmente por ano, era muito envergonhada mas foram felizes. No entanto, ele teve de ir para Lisboa, onde acabou por ficar noivo de outra rapariga, até que, quando voltou, decidiu que quem realmente queria a seu lado era Amélia, pediu-a em casamento, 61 anos de casados. Com um ar emocionado diz-me: “O meu marido era muito bom”.

Esteve em 42 anos a viver em S. Paulo no Brasil. No princípio chorava muito, depois habituou-se. O marido queria sempre a família junta, mas os filhos estavam por Portugal, o que fez com que acabassem por voltar para a zona de Albergaria. A vida de emigrante era uma vida complicada. Ainda voltaram ao Brasil para correr todos os estados de S.Paulo e passear.

Trabalhou sempre em casa, o marido não queria que trabalhasse. Ainda assim, teve a oportunidade de ajudar numa padaria, perto da qual viviam e onde o marido trabalhava. Em frente à padaria havia uma igreja, na hora de saída da missa havia muita gente e ela ia ajudar. “Sempre fui uma pessoa muito ativa e gostava de trabalhar.” , confessa, “Nunca gostei de mandar, gostei sempre de fazer”. Nos tempos livres, gostava muito de fazer crochet, “Fiz jogos de quarto, colchas de crochet para os meus filhos… Aprendi sozinha, pelas amostras. Uma vez vim para o Brasil e no aeroporto fiz uma colcha para a minha filha às tiras, fiz o resto lá em S.Paulo. Levei uma mala cheia de novelos!“ ri-se ao contar, imaginando como seria se lhe abrissem a mala no aeroporto.

Um dos seus momentos mais felizes foi quando nasceu o filho. Vivia nos anexos da casa de uma senhora italiana que a adotou como filha, acompanhou-a sempre e ajudou a fazer o enxoval para o menino. E depois, outro momento feliz foi, claro, com o nascimento da filha, aos 3 anos e meio do filho. Já o dia mais triste, afirma sem hesitar, foi há 8 anos quando o marido faleceu, vítima de doença, “Para mim acabou a vida”, confessa. Quando o marido tinha de se ausentar, sentia muito a falta dele. No entanto, tem fé de que ele está bem. O marido disse-lhe, certa vez, “oh mulher tu és uma pessoa que é mãe, mulher, enfermeira… onde eu estiver vou sempre cuidar de ti” e Amélia replica esta frase com um brilho nos olhos, acrescentando: “nós amamos o que é nosso e estimamos o que é nosso”.

Tem uma prótese há 24 anos na anca, uma velha amiga que a acompanha, mas não se lastima “foi assim, é assim que está, é assim que fica, pronto!”, diz que não vale a pena queixar-se das suas dores aos outros, quando é preciso vai ao médico e é isso. Caía várias vezes e isso levou a que tivesse de ir para o Solar, dado que vivia sozinha. Ao fim de semana está com os filhos.

Aventuras, também as houve! Risonha conta-me uma situação: quando pôs a prótese na perna, o marido disse ao sobrinho para ir buscar um balde de laranjas ao pomar, mas ele não foi. Então, Amélia decidiu trepar a laranjeira sozinha, sem ninguém saber, ainda não tinha ela recuperado da operação. O marido “ralhou” mas ela sentia-se tão bem! E não aconteceu nada! Não era pessoa para ficar parada, “tinha que arranjar sempre algo para me movimentar. Sentia-me com tanta coragem e vontade de fazer, que fazia!”. Diz que não adianta ter arrependimentos, já está feito paciência!

O bolo favorito é o bolo de arroz, é um bolo seco, que é como gosta. Gosta muito do campo, não é pessoa de praia. Ainda assim, tem um apartamento na Torreira e em julho, quando o marido era vivo, iam para lá. Tomou muitos banhos de mar na Torreira, o marido gostava muito, recorda. No entanto, frisa convicta, que o que ela gosta é de monte, de campo. Tinha galinhas, rolas e pombas (ainda tem na casa dela, aliás), o marido levantava-se de manhã para cuidar delas. Amélia gostava e até era capaz de ajudar na matança das galinhas para alimentação, mas depois deixou de ter coragem para isso, confidencia-me, pensativa.

Perguntei o que gostaria de deixar como mensagem final. Amélia deixa aos jovens o conselho que dá sempre aos seus netos: “ser humilde, saber estar… a educação é o melhor para qualquer pessoa”.

São estas vidas de anónimos que, mesmo não sendo produções de cinema cheias de explosões ou feitos incríveis, nos preenchem. São histórias e vidas das pessoas que nos rodeiam. Das ditas “pessoas comuns”. E afinal… as nossas vidas são preenchidas por quem? Por esses mesmos meros mortais. A minha preencheu-se e expandiu-se, multiplicou ramificações ao conversar com a Dona Amélia. Há que parar, sentar e ouvir. Sugiro que se sentem num banco de jardim e esperem. Quem sabe… talvez venham a ter uma boa conversa com um desconhecido. “Então e o que vai escrever? Eu não falei nada, falei mais de mim”, Amélia dizia-me rindo. Foi Amélia quem deu voz à minha escrita.

Henrique Pereira

Henrique Pereira é um homem que está a viver a sua sétima década. Traz consigo as histórias dos seus amores e das cicatrizes de Castelo de Paiva. Um dos eventos que ecoa sempre em suas lembranças foi o dia em que a ponte caiu, em 2001, um acontecimento que deixou marcas profundas na comunidade.

Henrique fez a sua vida em Santa Maria da Feira. No entanto, não me quis falar muito sobre si, sentia-se mais confortável quando falava da sua amada. Os seus olhos brilhavam com uma luz extra especial e o seu sorriso aumentava, como se ela ainda estivesse presente ao seu lado. Todo o amor e as lembranças da vida passada juntos estão bem vivas no seu coração. Ambos compartilhavam uma paixão pela dança e por jogos. Henrique é um homem namoradeiro, que dá muito valor ao toque físico. Durante a nossa conversa, tivemos tempo para um jogo, em que eu imitava os gestos que o senhor Henrique fazia. Mais uma coisa que lhe fazia relembrar a sua mulher.

O seu conselho para mim foi bastante simples, mas profundo: encontrar um parceiro que me trate com amor, carinho e muito respeito como ele sempre tratou o seu amor, o seu bebé. Ao longo dos 30 minutos que ficamos a falar, Henrique nunca deixou de sorrir e deu muitas gargalhadas, mostrando que, independentemente do que a vida nos traz, devemos sempre encarar tudo com positividade, amor e ter espaço no nosso coração para todos. E nas suas memórias e histórias, a essência do nosso Henrique permanecerá sempre viva, como um tributo ao poder do amor verdadeiro e duradouro.

Irene Cardoso

“A minha história de pequenina até agora é maior do que os romances”, disse Irene.

Deixo aqui alguns trechos deste longo romance. Mas devo dizer que ninguém faz jus a este romance senão a própria voz da D. Irene.

Irene descreve-se como uma sereia, é paraplégica e só mexe as mãos, os seus “ancinhos” como diz. A vida tem sido complicada, um daqueles romances um tanto ou quanto trágicos e que nos prendem a cada página.

A nossa sereia nasceu de parto normal em Ourentã e a infância também foi por lá. Em miúda, passava os dias em tropelias e brincadeiras a picar os bois. Tinha 6 anos e já andava a ajudar nos trabalhos com estes animais, ou a arrelia-los, vá… Irene sorri muito ao contar-me essas histórias de pequenina, não tinha medo, achava engraçada a interação e a adrenalina de fugir. Conta-me acerca de pequenas “asneiras” de criança e pequenas mentiras, e de como corria para fugir aos castigos. Toda a gente dizia que ela era “pior que o Eusébio” a correr para fugir. Escondia-se dos pais às vezes, sorrateira. Não fazia nada por mal.

Recorda um pequeno acidente que teve em miúda enquanto varejava azeitona e caiu de uma oliveira. Ficou a doer-lhe o rabo, confessa, mas não a levaram ao médico. Toda a gente lhe dizia que bastava a mãe fazer-lhe um chá, ou um dos seus caldos com ossos, para ela ficar boa. A sua mãe, Irene recordou saudosa, era uma pessoa simples e sempre a sua curandeira, com solução caseira para os males.

Teve um desgosto grande aos 16 anos, quando o pai morreu. Na altura ainda era travessa, diz ela. Gostava muito de andar nos bailes e dançar com os rapazes. Era namoradeira e “danada por dançar”, ri. Quem comprasse uma prenda tinha direito a escolher uma moça e dançar com ela, e havia um rapaz que queria sempre dançar com ela, sendo que o desejo era mútuo.

Mais tarde conheceu aquele que seria o seu marido. Era músico, tocava bateria, andava de terra em terra. “Fazia música de qualquer maneira!”, recorda Irene alegre. E diz-me tímida, que era mais velha mas “era tão lindo, tão lindo… com o cabelo encaracoladinho… parece que nunca tinha visto rapaz mais lindo na minha vida!”. O carinho que lhe tinha não passou despercebido na nossa conversa. O marido era muito seu amigo e cúmplice, fala com muita ternura de toda a alegria que lhe trazia e de dias bem passados na praia.

A nossa conversa desenrolou-se também para falarmos acerca da matança de porcos e salgadeiras, que alimentava a família durante um ano. Memórias vivas de tradições antigas e não tão longínquas assim.

Mas nem tudo no seu discurso é leve, são “vidas complicadas” desabafa. Tinha muitos animais, faziam criação de gado, era o trabalho. Estalou o pescoço e a espinha aos trinta e poucos anos, devido a um acidente ao subir um escadote. Nunca se deixou parar, ainda assim. Só a sua cabeça é que viaja, recordando sempre o passado. Sonha que trabalha, que anda a limpar o curral de bois… Faz por ser animada, apesar de também ter os seus dias maus. Mas não foi isso que me mostrou.

Aos jovens aconselha-os a viver sempre uma vida feliz, não ligar ao que os outros dizem, seguir sempre as suas ideias, da melhor maneira. No entanto, relembra o cuidado e prudência do seu marido em contraste com a sua espontaneidade e rebeldia, que por vezes, diz que a afetaram. Por isso deixa o conselho de se pensar um pouco mais antes de fazer as coisas. Hoje é mais prudente, mas ainda afirma dizer as suas “maluqueiras”.

Irene é a pequena Tom Sawyer portuguesa. De certeza que foi nela que Mark Twain se inspirou! Mas este, é outro romance. “Aproveitem o tempo enquanto têm tempo”, é a mensagem com que termina esta história.

Isolete Brandão

A Senhora Maria Isolete Gomes Brandão e a sua história são um exemplo de vida para todos nós, pois foi uma vida vivida com intensidade e propósito.

Isolete Brandão, descreve-se como uma mulher que tem a sua maneira de ser forte, arranja sempre soluções para os problemas, dá a volta por cima e aceita a sociedade como ela é. Nasceu em 1930, cresceu num ambiente cheio de crianças. Foi a primogénita de seis irmãos e a neta mais velha entre quinze netos, testemunhando desde cedo o poder do amor e da união familiar. Contou-me as suas memórias de uma infância muito feliz, onde brincou com as suas bonecas de papelão, saltou à corda e à macaca, embalada pelo riso e pela companhia de uma família numerosa.

Desde tenra idade, Isolete demonstrou curiosidade e sede de conhecimento. Ela aprendeu a ler com apenas cinco anos! Frequentou a escola até a quarta classe, mas a sua vontade de aprender mais, fez com que, aos 44 anos, decidisse continuar a sua educação, completando o sexto ano. E espantem-se porque ela não se ficou por aqui, aos 74 anos, alcançou mais um marco ao concluir o nono ano.

O seu casamento, aos 25 anos, trouxe-lhe vários dos momentos mais felizes da sua vida. O nascimento dos seus quatro filhos, apesar de dois deles infelizmente já falecidos, Isolete tem muito orgulho no que os seus filhos se tornaram e no que alcançaram na vida. Inclusive, a sua memória mais marcante foi quando o filho que sofria de esquizofrenia tirou um curso de inseminação artificial, este momento encheu-a de orgulho e esperança, da vida que o seu filho conseguiria alcançar qualquer coisa a que se propusesse, apesar da sua condição.

Não foi apenas sede por aprender que a nossa amiga Isolete demonstrou desde muito nova. O seu caminho de entrega e vontade de ajudar o próximo começou aos 10 anos, quando queria pedir dinheiro para dar aos pobres. Já na sua vida adulta, fundou uma associação na Rua Júlio Dinis, no Porto, onde dedicava o seu tempo a ajudar 18 pessoas com problemas de saúde mental. A melhor forma que arranjou para aprender mais acerca da doença do filho e como lhe dar o suporte que precisava, porque através da sua associação, Isolete ia a vários congressos acerca do tema, dados pelos irmãos São João de Deus, uma Ordem Hospitaleira de Fátima.

A senhora Isolete teve um AVC que é a principal razão pela qual foi para o lar. A sua família sente-se mais descansada sabendo que ela tem alguém a cuidar dela tão perto o dia todo. Com seus 93 anos de idade, Isolete reside no lar há cinco, onde pode focar-se nos seus hobbies e desfrutar dos momentos de lazer.

O seu cabelo grisalho, penteado e bem arranjado, já esvoaçou por vários sítios do país e do mundo. Isolete é do Porto, da Póvoa de Varzim, já viveu em em Santo Tirso, no Minho, e adora ir a Lisboa. No que diz respeito a sítios mais distantes viajou por Roma, Paris e pelos Açores. A sua parte preferida de todas as viagens era visitar as igrejas e os museus, ambos símbolos de história, uma área que sempre a fascinou bastante.

A senhora Isolete é uma mulher pequenina, mas com muita energia. Gosta muito de festas, de ter a família reunida, de rir, beber, falar, comer e dançar. Adora falar com as pessoas e ouvir as suas histórias, pois, pelas suas próprias palavras, é através das histórias que se conhece o povo. O seu prato preferido é peixe cozido com batata.

Quando lhe pedi um conselho disse-me que tenho de viver a minha vida com rigor e com carinho, de cabeça levantada independentemente do que a vida nos traz. Para aceitar o próximo como ele é, aceitar a sociedade senão ficamos tristes, amargos e rancorosos. Disse para me lembrar que a minha liberdade acaba quando a do outro começa.

A história da nossa Isolete emocionou-me bastante. Trouxe-me recordações da minha avózinha e revi-me na filosofia de vida da senhora Isolete. Relembrarei sempre a nossa conversa e a senhora Isolete Brandão, uma mulher determinada, que sempre seguiu o seu coração e deu o seu ao próximo. Uma mulher resiliente, que sempre procurou educar-se e que sempre viu a idade como um mero número e isso nunca a impediu de fazer nada. É um testemunho da força do espírito humano, da capacidade de superar adversidades e encontrar significado na caminhada da vida. Ela é uma luz brilhante em um mundo muitas vezes escuro, mostrando-nos que, mesmo nas dificuldades, há sempre espaço para o amor, a esperança e a compaixão.

José Maria de Sousa

Nascido em Vila Nova de Gaia em 21 de fevereiro de 1957, José Maria Silva de Sousa vive cada dia com a combinação certa de conformismo e superação, traços distintos que foram adquiridos ao longo de uma vida repleta de desafios e adaptações. O mais novo de quatro irmãos e uma irmã, viu no seu pai, Alcino, um modelo a seguir: um trabalhador incansável tanto nos campos agrícolas como na construção.

Aos 12 anos iniciou a sua trajetória profissional, como padeiro na Agripan, uma fábrica dedicada à panificação, em Vila Nova de Gaia. Trabalhava arduamente no fabrico do pão, todos os dias da meia-noite às sete da manhã. Infelizmente, a sua jornada no mundo do trabalho foi interrompida por episódios de alteração de humor devido à epilepsia. Sem medicação adequada na época, “Zé” Maria teve de se reformar por invalidez aos 28 anos, como consequência de episódios epiléticos recorrentes. Mais tarde, aos 30 anos, José decidiu perpetuar um pouco da sua identidade com duas tatuagens nos braços… Um gesto que revela individualidade e irreverência, características que ainda mantém até ao dia de hoje, orgulhosamente.

Destaca os prazeres simples da vida como as suas atividades favoritas durante a juventude e idade adulta: gosto por passeios, beber um café e ler o jornal. Álcool e paixões nunca o deixaram deslumbrado, o álcool interferia com a medicação e piorava os episódios de epilepsia, e os namoriscos nunca passaram disso mesmo. Nessa altura, era também adepto fervoroso do Benfica e de um clube local em Gaia, apreciava o fado da Amália e do Carlos do Carmo, os sons dos ranchos e as longas conversas que tinha com amigos.

No entanto, quando os seus pais faleceram, teve que se ajustar a uma nova realidade. Com a ajuda de um conhecido, encontrou um novo lar no Solar das Camélias em 2010. Foi neste ambiente acolhedor que finalmente alcançou o sossego e o acompanhamento médico que necessitava, de forma a pôr um fim aos seus ataques epiléticos. Aqui, a sua vida flui tranquilamente, algo que se reflete nas palavras de agradecimento que deixou ao staff do lar, pelo carinho e apoio prestados todos os dias da última década.

Como em qualquer outro aspeto da sua vida, Zé Maria nunca foi de extremos. Hoje, sentado na cadeira de rodas, confessa que desfruta de uma vida com moderação, sem muito prazer e sem muita dor. Passeios pelo pátio sim, desde que sejam curtos. Animais sim, desde que estejam longe. Conversas (como a que estávamos a ter) sim, desde que não passem dos 30 minutos (algo que tentei cumprir ao máximo).

No Solar das Camélias, José tem uma rotina pacífica, apreciando os dias que, nas suas próprias palavras, têm altos e baixos, especialmente no que diz respeito à comida! Sobre os seus companheiros no lar, ele é desinibido ao ponto de admitir que alguns o deixam agitado, sobretudo na hora das refeições. O barulho e a movimentação desorganizada de alguns utentes durante o dia deixam José Maria enervado. No entanto, compartilha o quarto com um utente silencioso, o que para ele, é a cereja no topo do bolo depois de um dia de azáfama.

Teve dificuldade em encontrar o adjetivo que melhor o descreve… Mas eu fi-lo por ele: honesto. Um homem de princípios sólidos, algo que ele atribui aos ensinamentos que os seus pais lhe transmitiram.

A história de José Maria Silva de Sousa relembra-nos de que apesar dos obstáculos que nos são apresentados, a vida pode sempre ser vivida com serenidade. Apesar da ocasional raiva direcionada aos seus colegas do lar, José vê a vida como ela é. Não como foi ou como deveria ter sido. Sem histerias ou desilusões, sem fanfarras e exageros. Só por aí, José Maria já alcançou um nível de paz espiritual que muitos de nós jamais iremos alcançar.

Maria Borda

Maria Borda Gonçalves dos Santos nasceu em Sobreiro (Albergaria à Velha) no dia 2 de setembro de 1950. Cresceu como filha única de pais agricultores. A sua vida teve uma reviravolta quando, aos 20 anos de idade, a família se mudou para Moçambique, em busca de um futuro melhor.

Em Moçambique, Maria e os pais desfrutaram de uma vida próspera. O seu pai operava como marceneiro, a sua mãe desempenhava funções de dona de casa, e Maria casou-se com António (nascido em Moçambique, filho de pais portugueses), que trabalhava no aeroporto local.

Infelizmente, em meados da década de 70, enfrentou a necessidade de deixar para trás a sua casa e grande parte das suas posses. Regressada a Portugal, recomeçou a sua vida em Sobreiro, ao lado do marido que arranjou emprego ao serviço da Escola Secundária de Albergaria-a-Velha. Poucos anos depois do regresso a casa, nasceu Carlos, o seu único filho. Em Sobreiro, Maria dedicava o seu tempo à família e à costura, que reflete como a sua atividade favorita na altura.

Viúva desde 2008, Maria acabou por se mudar para o Solar das Camélias em 2022. Confessa que gosta de estar no lar, que as funcionárias são simpáticas, as cadeiras confortáveis, e a comida… “A comida tem dias”. Nesse momento, ambos demos uma gargalhada. Tal como todos os cozinheiros sabem, o cardápio não pode sempre agradar a todos. Maria tem um problema de visão, o que a levou a desistir de algumas das suas atividades favoritas, como a costura e a pintura.

Quando a questionei sobre os momentos dos quais tem mais saudades, Maria escolheu as férias anuais passadas no Algarve com o marido e filho, quando este era jovem. Hoje em dia, Carlos vive na Suíça com a sua esposa e uma filha de um ano e meio. Não há maior motivo de alegria e orgulho para Maria do que esta menina “linda”, nas suas palavras. “Os nossos são sempre lindos, mas ela é mesmo linda”, reflete. Viu a menina ao vivo no Natal passado, mas o seu filho mostra-lhe fotografias sempre que a vem visitar, algo que faz com regularidade.

A decisão de se mudar para o Solar das Camélias foi motivada pela necessidade de segurança e assistência 24 horas por dia, mas Dona Maria acabou por reaver alegria nas atividades oferecidas pela instituição. Ao fim de semana, o ambiente fica mais monótono, sem a presença das animadoras. No entanto, é ao fim de semana que costuma receber visitas de primos e amigos, algo que a deixa sempre de bom humor. Lamenta apenas não saber utilizar o telemóvel, de forma a manter contacto com quem não a consegue visitar.

Maria descreve-se como uma mulher frágil, no que diz respeito à saúde física. Ao contrário da sua mãe, que faleceu apenas há cerca de 3 anos, e trabalhou ativamente na agricultura até uma idade avançada.

Relembrando com carinho os seus pais e a sua vida em Moçambique, Dona Maria é uma mulher de família que acompanha à distância os seus entes mais queridos. Contudo, no Solar das Camélias, sente que há sempre alguém disponível para a ajudar e fazer companhia, seja de dia ou de noite. Uma mulher de coração puro, Maria personifica a beleza da simplicidade entre palavras e sorrisos. Um exemplo de como a família e o amor podem sustentar-nos, independentemente das circunstâncias da vida.

Maria da Conceição Silva

Maria da Conceição diz que já está no Solar das Camélias há muito tempo, mas como o tempo é relativo, não precisou datas. Diz que gosta de lá estar, “É tudo boa gente!” afirma animada. 93 primaveras feitas, a 17 de maio, o mês mais bonito do ano, diz-me risonha.

Assim que perguntei acerca de onde cresceu a primeira coisa que lhe saltou à mente foi falar da mãe e da tia/madrinha. Cresceu em Felgueiras, terra do bolo rei, das cavacas e do pão de ló, feito só com gema de ovo, claro! As claras, essas, não se desperdiçaram, as pessoas iam buscá-las para fritar e comer. A mãe e a tia queriam que ela aprendesse o ofício de fazer estes doces, para os vender. E assim o foi, aos 10 anos, já ela sabia como fazer o pão de ló, com dúzias de ovos.

A sua professora, D. Júlia, recorda, considerava-a muito inteligente, conta-nos com um brilhozinho de orgulho nos olhos. Fez o exame da 3ª classe e a sua professora queria que Maria da Conceição viesse a ser professora também. Assim, quando se reformasse ficava ela no seu lugar. Mas ela não queria ser isso, antes queria pegar na sachola e ir para o campo.

E assim foi, não quis seguir estudos. Diz que as colegas a invejavam por a professora a admirar tanto e incentivar a sua inteligência. Essa atitude das colegas incomodava-a e pouca importância lhes dava.

Cuidou de crianças, enquanto ama, e gostava muito disso. Fez a comunhão solene e aprendeu a doutrina toda, que ensinou às colegas. Pode não ter sido formalmente professora, mas ao longo da vida, sem dúvida que ensinou muita coisa a muitos.

Casou-se mas nunca teve filhos. Continua a ver a missa todos os dias ao domingo, não falha nunca, diz! Nunca quis parar, reformou-se já tarde.

Com um sorriso maroto, quase pueril, confessa-nos que não gosta de carne, então deixa na beira do prato. O que lhe vale é a sopa, diz a rir. Se for massa e arroz também gosta, agora a carne…

Maria Ermelinda Nunes

A Dona Maria Ermelinda Cardoso Nunes, nascida em 7 de setembro de 1942, é natural do Porto, mais especificamente de Lordelo do Ouro. Completou a 4ª classe, jogava à macaca quando era pequena, tendo começado a trabalhar aos 8 anos de idade. É uma mulher de aço, já que trabalhou nas obras e em várias fábricas, onde fiava e torcia lã, seda, com recurso ao tear . Depois do 25 de abril e já reformada, ainda trabalhou muito nas terras a “fazer a lavoura”. Tinha também animais, alguns porcos e, maioritariamente vacas, chegou a ter 17, às quais, mecanicamente, tirava o leite e vendia. Curiosamente, não gosta nem nunca gostou de leite. Já de flores gosta muito, de plantas em geral e do trabalho que fazia nas terras.

Tinha 5 irmãos, casou-se aos 27 anos e teve 2 rapazes, mas infelizmente um faleceu novo, aos 24 anos, por andar nas “más companhias” e na droga. Também ficou viúva cedo, sendo que o marido bebia muito. Apesar do lado menos bom da vida, tem uma família, o primeiro filho, que lhe deu alguns netos e que decidiram apostar em carreiras promissoras sendo que tem um dos netos como finalista em medicina.

A D. Maria está no lar há cerca de 2 anos depois de ter tido um AVC. Apesar de ter recuperado muito bem, os números de telemóvel é que ficaram esquecidos. Os momentos mais felizes da sua vida foram o nascimento dos seus filhos.

Um conselho que deixa para as gerações futuras: “tenham juízo, a vida é curta”.

Maria Preciosa Dias

A D. Preciosa estava um pouco desconfiada, e sem saber ao certo o que estava aquele grupo de jovens ali a fazer. Depois de nos apresentarmos e explicarmos, lá a conversa se começou a desenrolar.

Preciosa é a memória viva de dias passados como vendedora nos mercados locais. Foi por entre pessoas e campo que cresceu. A sua infância, passou-a com a mãe, e irmãos, passando por Oliveira de Azeméis, Estarreja, Albergaria a Velha, a vender produtos no mercado. Os produtos, esses, eram semeados e colhidos pelas suas mãos e da sua família. Andava sempre de um lado para o outro, e gostava muito dessa dinâmica. Nem sempre havia tempo para brincar no meio de tudo isso. No entanto, ainda assim, havia dias em que brincavam e entretinham-se no campo por entre o trabalho, como qualquer outra criança.

Casou-se aos 17 anos, com um amigo da família. Sorri ao dizer que se davam muito bem e que… uma coisa foi levando à outra. Já depois de casada e com filhos, emigraram para França, à procura de melhores condições de vida. Lá, trabalhou no hotel, onde criou laços com uma patroa de quem gostava muito. Mais do que patroa, Preciosa encontrou uma amiga. Fala dela com um imenso carinho e recorda um bolo esta lhe ofereceu certa vez. Ficou-lhe na memória o gesto e nota-se no olhar de Preciosa que a leva a viajar no tempo.

Confessa que gosta muito de cozinhar, no entanto, a mão direita parece já não ajudar muito hoje em dia. A vida foi difícil, desabafa e fala-me triste de como tudo acaba, com uma saudade na voz que se entrelaça na minha garganta ao ouvir.

Aos jovens, aconselha-os a estudarem, se assim lhes for possível e se assim o desejarem. Recorda com orgulho o afinco do seu filho enquanto aluno e é isso que deseja ver nos jovens. Deixa também uma vontade e esperança de que as pessoas “honestas” possam ter uma vida mais fácil. São estas as palavras ricas de Preciosa que, apressada termina a nossa conversa, pois tem algo de importante para ir fazer. Não me contou o quê, é algo que faz parte do seu mundo… mas deixou-me a sua história para ser partilhada.

Maria Tavares da Silva

Maria Tavares da Silva, uma mulher, com os seus belos 89 anos, cujas belas rugas contam a história de uma vida repleta de simplicidade e amor. Ela mesma descreve sua própria existência como uma “vidinha”, mas por trás dessa modéstia, há uma vida de trabalho árduo e momentos de alegria que merecem ser celebrados.

Desde jovem, Maria dedicou-se ao cuidado do marido e da família, trabalhando nas suas várias hortas, nas quais plantava batata, couve, feijão e milho, para garantir comida na mesa. Tinha ainda animais domésticos, entre eles, coelhos, porcos e ovelhas. A sua generosidade ia além, compartilhando o que colhia com vizinhos, num exemplo vivo de solidariedade.

Apesar das dificuldades, Maria e seu marido alcançaram um conforto modesto com a aquisição de um "carrinho". Ela nunca aprendeu a conduzir, pois o medo sempre a impediu, mas isso não a impediu de enfrentar outros desafios da vida com coragem.

Nascida em Oliveira de Azeméis, Maria teve a sua educação interrompida cedo, estudando só até à quarta classe, mas guarda com carinho as duas lembranças da escola, era muito boa aluna, e lamenta não ter tido a oportunidade de estudar mais devido à rigidez do seu pai. A simples tarefa de escrever o seu próprio nome, que lhe propus, trazia-lhe uma mistura de nostalgia e orgulho, apesar da sua visão já enfraquecida.

A partida do irmão para o Brasil, quando este completou 16 anos, deixou uma lacuna na sua vida, perdendo o contato ao longo dos anos. Mas foi ao lado do marido que Maria construiu a sua felicidade, casando-se aos 18 anos e sempre partilharam um respeito mútuo, até que a morte repentina dele há duas décadas a deixou desamparada.

O nascimento do seu filho, Carlos Alberto, quando tinha 26 anos, foi uma bênção que encheu a sua vida de alegria, recorda-se como o momento mais feliz da sua vida. Hoje, ela é uma mãe e avó orgulhosa, ansiando pelas visitas do filho e pelas férias de verão para poder abraçar as suas netas, Leonor e Júlia, com 7 e 3 anos, que vivem distantes.

O seu cabelo grisalho, penteado e bem arranjado, com uma risca para o lado já esvoaçou pelos ares da Alemanha. Foi a primeira vez que andou de avião, após ter ficado viúva, e tem poucas, mas boas recordações dessa viagem. O edifício que mais gostou foi o banco Deutsche Bundesbank, o banco central da República Federal da Alemanha que faz pate do Sistema Europeu de Bancos Centris. Lembra-se de, na altura que lá foi, haviam muitos poucos carros na rua e gostou particularmente desse facto.

Vaidosa e simples ao mesmo tempo, Maria sempre bem apresentada, nunca dispensou de um relógio no pulso. Desde que se mudou para o lar das Camélias em junho de 2023, sente-se aprisionada numa rotina monótona, especialmente agora que luta contra cancro no estômago, que a impede de desfrutar dos prazeres simples da alimentação. Nos dias mais difíceis, sente-se perdida, que a sua vida está sem sentido e que apenas está a sobreviver neste mundo.

Quando pedi um conselho de vida, Maria, com sua sabedoria singela, alertou-me para ser cautelosa nas escolhas e desejou-me sorte. Uma mulher cética, que me dis para ter cuidade com a ilusão da vida. Realista, ela entende que a vida está aqui e agora, e devemos aproveitar cada momento ao lado daqueles que amamos.

A história de Maria é um relembrar poderoso de que a verdadeira riqueza reside na simplicidade, na generosidade e no amor compartilhado com os outros.

Natália Novo

Natália tem 87 anos, parte deles foram vividos em Angola, onde nasceu, tendo, mais tarde, vindo para Portugal. Ela nasceu no dia de Natal, em casa, e tem apenas um irmão mais velho, pois a sua irmã morreu de bronquite aos 6 anos, quando a Natália tinha 2 anos.

Admitiu ter um carinho especial por Portugal e particularmente pela cidade de Aveiro. Na altura, os meios de transporte não eram muito acessíveis e seguros, por isso as viagens de ida e volta não eram tão frequentes e acabava por ficar longas temporadas em casa dos tios, que viviam no Alboi, Aveiro. Ainda assim fez a primeira visita a Portugal com apenas 2 anos e terá regressado aos 8 anos, para frequentar a escola primária e comercial.

A sua mãe colocou-a num colégio de freiras em Angola até aos 18 anos, onde tinha pouca liberdade. Posteriormente, acabou por tirar o curso de formação feminina num colégio em Catumbela, que lhe permitiu dar aulas.

Recorda-se com nostalgia do passado, nomeadamente quando voltou a Portugal com as suas amigas, no período de férias do colégio, já com 18 anos. Curiosamente, foi nesta viagem que conheceu o seu namorado e futuro marido, afirmando ter sido “amor à primeira vista”.

Este amor cresceu ao longo dos anos, mesmo que à distância. Durante dois anos, ele foi para a tropa em Vendas Novas, mas escrevia-lhe todos os dias. No entanto, houve muitos enredos com o namorado de Natália, revelando-se muito mulherengo. Tanto que, numa viagem que ele fez com antigos colegas, arranjou outra namorada de Braga, da qual guardava uma foto na carteira, o que desencadeou mais tarde uma história de novela e um grande confronto na noite do casamento.

Por sua vez, também Natália era muito admirada pelos rapazes e recebia, inclusive, múltiplas cartas de amor, as quais negava consecutivamente por já estar comprometida. Após 2 anos de namoro, começaram a pensar em ir para Angola. Ele escreveu uma carta aos pais de Natália a pedir o consentimento para casarem, quando soube que ela ia voltar para a terra natal, ao qual eles acederam, pois também ele provinha de boas famílias.

A verdade é que quando esta namorada soube que ele ia casar, ela foi confrontá-lo e encontraram-se no Hotel Imperial, mas ele daqui saiu com a sua noiva, a Natália, que tinha uma boa família. Casaram em Aveiro, na igreja de Santo António. Por sua vez, a boda foi no Hotel Imperial, tendo sido celebrado no Hotel História em Coimbra e passados dois meses foram para Lisboa com o intuito de embarcar para Luanda.

Os tios de Natália prometeram arranjar trabalho para o marido, no entanto, foram surpreendidos à chegada com o contrário, tendo, por isso, ido para a terra natal, Catumbela, a pedido do seu pai, que arranjou logo trabalho ao genro como escriturário. Por sua vez, Natália permaneceu como dona de casa com os seus afazeres domésticos, enquanto dava aulas a crianças lá em casa, como uma forma de ocupar os seus tempos livres. Além disso, ela própria fez todo o seu enxoval, dando azos ao seu gosto por bordar, por isso usou o dinheiro mensal que recebia dos pais para comprar os tecidos. De seguida, aprendeu a usar a máquina, com a qual fez uma almofada bordada em cetim e ainda se arriscou na pintura à pena. Posteriormente, tirou uma formação, cuja ideia terá resultado de um livro de receitas que lá tinha em casa e começou a fazer bolos grandes e saborosos, para grandes eventos como casamentos e batizados.

Passaram confortavelmente 15 anos sem vir a Portugal e, entretanto, nasceu o seu filho que foi para Portugal, devido a um problema de saúde, tendo permanecido 2 meses no hospital em Lisboa. Durante este período, foram os avós que ficaram com ele, enquanto eles estavam em Angola, mas não tardou até o pai conseguir uma licença no trabalho, a qual recebia de 4 em 4 anos, para vir gozar a Portugal, durante 6 meses.

Recorda-se de muitas celebrações bonitas, tais como o Natal e a Páscoa que, segundo ela, se assemelham ao que é feito em Portugal. Após o casamento, o Natal variava entre Angola e Portugal. Em Angola, o padre ia cear em sua casa, por sua vez, em Portugal, era o seu tio que se juntava à celebração. Enquanto na Páscoa, a tradição passa por comer o cabrito e a visita do padre à sua casa. Por sua vez, no Carnaval havia a “batucada dos pretos” em Angola, já em Portugal costumava passar toda a noite com os seus amigos, todos mascarados claro.

Natália sempre foi muito caseira e de conforto, além de que era uma apreciadora nata da gastronomia diversificada que a encontrou, entre os seus pratos portugueses favoritos estão a chanfana e o cozido à portuguesa. Já da culinária africana destacou a muamba, prato feito com óleo de palma, galinha, etc. e depois servido com pirão ou funge.

Acabou por não viajar muito para outros países para além de Angola e Portugal, tendo visitado apenas o Algarve, a Madeira e, também Espanha, inclusive Tenerife. Apesar de não gostar muito de concertos e também não ir à praia, compensou nas idas ao cinema recorrentes da sua infância e nos bailes e matinés no clube dos galitos, pois gostava muito de dançar.

O seu momento mais feliz foi a Comunhão Solene na Sé de Aveiro, com 11 anos, para a qual levou o seu vestidinho branco, contando com a presença dos seus tios. Em seguida, destaca o casamento, para o qual a sua mãe veio propositadamente à celebração na igreja de Santo António. Além disso, inevitavelmente, recorda com ternura o nascimento do seu filho com 4kg e uma grande cabeleira, o parto foi feito em casa com o acompanhamento de uma parteira diplomata de Lisboa.

Recorda-se ainda do 25 de abril de 1974 em Aveiro, em que Natália habitava o chalé dos sogros com o seu marido e onde terá permanecido cerca de 6 anos. Este movimento cívico trazia uma mensagem de esperança para as pessoas de nível baixo e, por isso, todos se mostraram felizes, acompanhados de um cravo vermelho simbólico. No entanto, não representou grande impacto no quotidiano do casal, visto que nunca sentiram grandes restrições. Como memórias dolorosas dessa época, descreveu momentos de tortura aos comunistas e de uns amigos seus em África, quando presos acordavam-nos às 5h da manhã e metiam-nos por baixo dos pingos consecutivos do chuveiro.

Por sua vez, Natália e o seu marido não quiseram mudar logo porque estavam com receio de cortarem o vencimento do homem, mas lá decidiram ficar. O seu filho formou-se em Farmácia na Universidade de Coimbra, tal como a sua nora que era de Lisboa, mas vinha todos os fins de semana a casa visitar os pais. De momento vive em Aveiro com a sua mulher, pelo que desta relação terá resultado um filho e, portanto, neto da Senhora Natália.

Ainda antes do 25 de abril, já tinham em vista a construção de um prédio com 3 andares, mas tiveram de esperar 3 anos, devido à falta de material. Posteriormente, construiu então um prédio cor-de-rosa com o seu marido em Aradas, este tinha 6 apartamentos, a parte de cima continha um salão, terraço e bar. Eles viveram acompanhados de 6 gatos no 3º andar, de onde Natália caiu na consoada de Natal, tendo partido o calcanhar em 4 partes e ter sido descoberta uma infeção grave na bexiga. Por sua vez, sofreu tratamento tanto para a infeção, como para os diabetes, que já se encontram controlados. Para este tratamento decidiu permanecer num local calmo, onde pudesse passar os seus dias, pelo que escolheu o lar em Albergaria-a-velha, também porque é onde se encontra a sua tia, da qual tanto gosta.

O seu marido terá morrido há algum tempo e como planos para o futuro tem uma viagem planeada com o seu neto de 21 anos, que está atualmente a estudar engenharia no 4º ano (1º ano de mestrado) e do qual gosta muito. Posto isto, tencionam viajar juntos para matar as saudades, como ela costuma dizer: “vão dar uma passeata e depois logo se vê para onde se vai, mas algures pela cidade de Aveiro”.

Natividade Gemelgo

Foi na bonita cidade de Mogadouro, no distrito de Bragança, que nasceu uma mulher cujo nome peculiar ecoa como uma melodia suave: Natividade dos Anjos Gemelo. É uma mulher bonita, cabelo forte e arranjado, na qual destaco os seus brincos, o colar e o relógio, os quais não consegue dispensar no seu dia a dia.

Natividade nasceu numa época em que a vida era simples e os prazeres eram encontrados nas pequenas coisas. Cresceu ao lado de uma irmã e teve uma infância repleta de brincadeiras ao ar livre, onde os jogos do pião e do saltitão enchiam os dias de alegria. Tinha uma saudade no olhar quando falou que foi à escola e fez a terceira classe.

Aos 22 anos, Natividade começou um novo ciclo ao casar-se com o amor da sua vida e partir para Aveiro, onde construiu seu lar ao lado do marido em Esgueira. Ali, criaram seus dois preciosos filhos, Maria do Céu e António Melo. Os anos passaram-se, e os filhos cresceram, dando a Natividade a alegria de se tornar avó e bisavó, momentos que ela guardava com ternura em seu coração.

Ela lembrava ainda, com carinho a sua casinha pequena, onde viu seus filhos crescerem, e da casa grande que construiu mais tarde, cheia de memórias e amor. Mas, acima de tudo, ela valorizava os laços familiares e a simplicidade da vida. Natividade falou muito mais da sua família do que de si, inclusive, quando perguntei qual o momento mais marcante da sua vida, respondeu que foi o nascimento do seu primeiro neto.

A vida de Natividade foi marcada pelo trabalho e pela dedicação à sua família. Ela trabalhou como doméstica, na horta, tomava conta dos seus animais da quinta e mais tarde ainda trabalhou na empresa que ela e o seu marido construíram juntos. Apesar do incentivo do marido, Natividade nunca aprendeu a conduzir, contudo nunca deixou de ser uma força vital na empresa, apoiando seu marido, o chefe, em todas as tarefas.

Atualmente, com os seus 81 anos, Natividade está no lar há três, e neste encontrou conforto na companhia dos outros residentes e nas atividades oferecidas. Ela gosta especialmente de jogar dominó e às cartas, sendo o seu jogo preferido a bisca. Apesar da idade, Natividade tem muito boa memória e é uma senhora bastante inteligente, esta sabia que Mogadouro fica exatamente a 280km de Aveiro!

Ao longo da sua vida, Natividade viajou bastante para vários locais, mais perto ou mais longe, conhecendo novas maravilhas deste mundo. Foi até Espanha, como é claro. Riu-se quando lhe perguntei se sabia falar Espanhol, tem uma gargalhada muito contagiante. Viajou ainda até aos paraísos de Portugal, aos Açores, à Madeira e até foi ver a casa do Papa.

Para Natividade, a música do cantor Marco Paulo era como uma trilha sonora de sua vida, enquanto sua fé católica era uma fonte de conforto e esperança. Seu conselho para os outros é simples: trabalhar muito, ser feliz, arranjar um companheiro, respeitar e compreender aqueles que nos rodeiam.

A vida de Natividade dos Anjos Gemelo pode ser resumida como uma história de trabalho árduo, amor e gratidão. Ela encontrou alegria nas coisas simples, valorizou os momentos compartilhados com sua família e ensinou aos outros o verdadeiro significado da vida. A sua vida foi um testemunho de que, mesmo nos tempos mais difíceis, o amor e a compreensão podem nos guiar para a felicidade verdadeira.